Tratar atualmente sobre as práticas
ou ofícios da religiosidade popular é voltar um olhar sobre manifestações
religiosas e culturais que clamam por resgate, que se constituem em um fator de
resistência ao moderno, marcado pelo desencantamento e com o enfraquecimento do
misticismo e do mágico que outrora povoavam a imaginação, davam suporte às tradições
tipicamente rurais, mesclavam-se com a religiosidade popular, fortaleciam os
laços de comunidade e envolviam aspectos da cultura como um todo.
Entre estas práticas, está a
Recomendação das Almas, que também com este desencantamento da quaresma e com a
mudança de paradigmas sociais deixa de ter as bases para sua realização e
sentido. As mudanças sociais, demográficas, tecnológicas, culturais, acabam
transformando os hábitos de vida, os
valores, as crenças e as tradições.
Enfim, ao alterar o território
propício a determinada prática, ou em outras palavras, ao alterar as bases
materiais de determinada manifestação, ela tende a ser afetada, muitas vezes,
enfraquecida ou esvaziada de sentido. Ela deixa de ser uma prática do cotidiano,
tornando-se em alguns casos uma tradição cultural (restrita a um nicho, como
lembrança saudosista ou comemorativa) ou às vezes, por falta de registro e
transmissão, nem isso.
O desencantamento
da quaresma citado pode ser entendido como o esquecimento, perda de sentido ou a falta de respeito, mesmo que este esteja interpretado de forma atrelada aos aspectos religiosos, com os princípios que norteavam estas manifestações.A quaresma perdeu parte de seu
sentido místico e folclórico, e com ela, todas as manifestações decorrentes
desta visão de mundo perderam seu encantamento.
E a prática da Recomendação, embora
não seja restrita à quaresma, tinha neste período religioso, marcado pela
penitência, pelas orações, suas mais significativas manifestações.
E assim como a Recomendação foi
sendo engolida pelo tempo e principalmente pelo contexto em que a quaresma
passou a ter um significado mais “urbano (digamos assim), a interpretação
popular de quaresma também sofreu alterações e perda de seus significados.
Destacando que estou tratando da quaresma pela ótica das crenças, valores e
visões de mundo populares, não da quaresma litúrgica e de sentido específico
dado pela Igreja.
Isto nos faz refletir não apenas
sobre a perda de parte da cultura popular, que se desintegra com a perda das
características rurais das comunidades, mas também refletir sobre a perda ou ao
menos mudança de valores inerentes à natureza humana: como o encantamento com o
desconhecido (em época de Google, apesar das contradições informacionais, nada
mais é desconhecido ou misterioso), a religiosidade (entendida em uma
perspectiva ampla, que abrange os valores humanos e consequentemente sociais) e
o respeito com as tradições.
Até mesmo a religiosidade popular
passou a ser substituída por uma religiosa mais eclesiástica. A influência da
igreja formal se capilarizou e com isso, suas regras e práticas oficiais
substituíram a atuação comunitária ou popular. Basta lembrar que outrora, em
muitas comunidades rurais, era comum as chamadas igrejinhas de santo, com
imagens, um altar, onde as famílias residentes se reuniam para suas práticas e celebrações
autônomas. Aqui podemos citar também práticas como batizados caseiros,
benzimentos, etc.
Respeitar as tradições não deixa de
ser, quase que intuitivamente, uma forma de preservar a cultura (como tratado
no texto sobre o tradicionalismo gaúcho no Paraná).
Infelizmente, muitas das tradições
se perdem pela falta de transmissão, pela perda de sentido com o contexto, pela
falta de registros, especialmente quando há na realização especificidades e
nuances regionais, e até pela falta de tempo, dado nosso cotidiano marcado pelo
produtivismo.
Na internet, muitos textos tratam
da Recomendação das Almas, porém, com muita divergência entre si, o que faz com
o que os registros locais se tornem importantes e únicos, demonstrando que esta
cultura ou tradição, assim como muitas outras, sofre as influências locais, o
que as torna, exclusivas e ainda mais valiosas. Mas não se trata de uma mudança
intencional, de uma necessidade de distinção ou exclusividade, mas sim de uma
adaptação contextual ou resultado da transmissão oral.
Segundo Eufrásio e Rocha (2015), no
Brasil há registros da Recomendação das Almas em diversas localidades, cada uma
apresentando características peculiares, o que dificulta enquadrá-las dentro de
uma definição precisa.
Embora existente em todo o Brasil,
as principais referências se dão no Amazonas, São Paulo, Bahia, Goiás,
Rondônia, Pará, Sergipe, Minas Gerais e no Paraná, trazendo consigo descrições
que demonstram o quanto o ritual acontece de forma diferente, mas ao mesmo
tempo, também com algumas semelhanças de lugar para lugar .
Segundo Paes (2007) esta
manifestação se fundamenta na crença católica do purgatório e da eficácia da
oração para encaminhar as almas dos falecidos ao descanso eterno e à salvação.
Tanto Paes (2007), quanto Eufrásio
e Rocha (2015) dissertam que esta tradição advém das épocas medievais,
congregando elementos mágico-pagãos com o catolicismo, ganhando nuances que
permaneceram na religiosidade popular, dando, especialmente em uma época
predominantemente de comunidades rurais, a possibilidade do povo participar das
orações, independentemente da presença oficial da igreja. Seria decorrência de
um catolicismo popular, diferente do catolicismo romano.
Paes (2007) relata também a
influência africana, tanto que em muitas comunidades remanescentes de
quilombos, a prática também ocorre.
Com suas diferenças, a prática
também ocorre ou ocorria em Portugal, demonstrando que a manifestação que
conhecemos ou que aqui ocorria, foi fruto de uma série de influências que deram
origem a um elemento próprio, específico,
com sentido diferente e contextualizado.
O site Jangada Brasil conta que, em
1515, na cidade de Coimbra, os encomendadores “no silêncio da noite, ao som de
uma campainha, despertavam os cidadãos com terríveis vozes”.
Os Jesuítas também foram atores neste
processo de formulação cultural. Ainda para Paes (2007) eles contribuíram com a
introdução da manifestação no Brasil.
No município de Rebouças – PR,
especialmente na comunidade do Barreiro (e Vila Ester), e nas comunidades
Faxinalenses do Salto e do Marmeleiro, segundo relatos, ocorria esta espécie de
manifestação popular, de caráter religioso, chamada de recomendação das almas.
Particularmente, me coloco como fonte de algumas informações, pois no início
dos anos de 1990, embora criança, tenho lembranças da realização desta prática
no município de Rebouças.
Além disso, obtive um vídeo com um dos netos de um Capelão (o Senhor Silvério Rodrigues) quando parte do grupo se apresentou no Colégio Professor Júlio Cesar, por volta de meados dos anos de 1990. Nesta ocasião, toda leva de estudantes daquela época teve a oportunidade de ao menos presenciar uma demonstração da prática, que em geral, era restrita aos períodos noturnos da quaresma. Outra ocasião documentada em vídeo foi a realização de um terno dentro da Igreja do Divino Espírito Santo, na comunidade do Barreiro.
Figura 01- Apresentação da Recomendação no Colégio Júlio César, em Rebouças – Meados dos anos de 1990
Mais especificamente, o texto tem
por propósito chamar a atenção para o histórico local da prática, relembrar o impulso
devocional que movia os participantes, destacando a necessidade do resgate ou
ao menos de registro desta manifestação pela sua importância como elemento
cultural próprio da região e de sua relação com o modo de vida de diversas
comunidades, especialmente rurais.
Superando o caráter religioso,
fatores como a vida rural que predominava na região, o respeito às tradições,
repassadas de geração em geração, a religiosidade e crença popular do povo, a
simplicidade e a fé, são elementos que tem significado também sob o ponto de
vista cultural.
Essa manifestação, apesar de ser
realizada em alguns velórios, ocorria principalmente nas quartas e
sextas-feiras de quaresma, quando um grupo de pessoas saía pelas ruas cantando
(ou rezando) algumas cantigas lúgubres, parando em frente ou adentrando em
algumas casas ou capelas.
Comenta-se que o grupo de pessoas
que rezava o terno visitava as casas que tinham crucifixos de madeiras pregados
nos portões, orando e cantando em frente a estas residências, e o morador, com
a casa totalmente fechada, após o término do rito os acolhia, servindo-lhes
algum comestível ou bebida.
Meira (2017), confirma esta
informação com relatos de moradores da comunidade de Faxinal dos Marmeleiros,
em Rebouças. Segundo ele, o símbolo da cruz nas casas é um sinal que aquela
família deseja receber o terno da quaresma, e somente nas casas que possuem a
cruz no portão é que o grupo de recomendação reza, sendo ela enfeitada com
fitas nos dias precedentes para demonstrar o aceite da família em receber o
grupo.
Segundo alguns sites, como o Portal Factótum Cultural e
diversos vídeos disponíveis no Youtube, comenta-se que são visitadas várias
casas por noite (fala-se de cumprir 7 ou 9 estações ou pontos de reza,
normalmente onde existem cruzes, o que pode incluir cemitérios e capelas),
definidas pelo capelão (líder do grupo). A recomendação não possui horário
definido para terminar, porém, caso dois grupos se encontrarem, devem ficar a
noite toda rezando.
Destaca-se que o capelão é o
responsável por coordenar o ofício e dirigir os demais rezadores, substituindo
a figura de um religioso oficial.
De acordo com Meira (2017), o capelão possui papel central no grupo, ditando as normas e puxando os cantos e rezas. Cabe a ele coordenar e capitanear as rezas dos dias santos e dos terços, além de oficializar a encomenda dos corpos, sempre que ocorriam falecimentos. Junto a ele, tem pessoas que entoam diversos tipos de vozes: “tem voz de fora, segunda voz e as rezadeiras que acompanham as duas duplas, rezam e depois mais duas continuam, quem quiser acompanhar também pode participar”, relata uma entrevistada pelo pesquisador.
No caso da variante adotada em Rebouças, especificamente na Vila Ester, a qual presenciei, o instrumento que ajudava na condução do ofício era a matraca, utilizada pelo capelão como um sinal sonoro. São duas peças de madeira presas com uma tira de couro (ou outro material) que empunhadas pelo cabo, se chocam e produzem o som.
Observando vídeos na internet sobre
outras variantes regionais da Recomendação (que vão desde o nome, como encomenda,
recomenda, terno, lamentação, etc.), há diferenças nas vestes. Em algumas
regiões do Brasil se cobre a cabeça ou se usa vestes brancas. No município de
Rebouças, a prática era realizada com roupas do dia a dia. Também em algumas
regiões do Brasil os recomendadores aparecem com instrumentos musicais.Figura 02 - Matraca
O uso de instrumentos (uso de viola, violão e outros) e a entonação dos cantos em algumas destas práticas guardam certa semelhança com a Romaria ou Dança de São Gonçalo que também temos em nossa região, embora esta tenha tom festivo.
Vale destacar ou citar a Romaria de
São Gonçalo porque assim como a Recomendação das Almas, é uma prática que faz
parte do contexto rural, do catolicismo popular e das tradições religiosas e
culturais que tem seu significado atingido pela urbanização e pelas mudanças
nas relações sociais de comunidade.
Figura 03 - Romaria de São Gonçalo em Goes Artigas - Inácio Martins PR
De acordo com Lewitzki e Fróis
(2021), a romaria também tem raízes no catolicismo popular. Embora existente em
outras regiões do Brasil, no contexto paranaense, faz parte da identidade dos povos do universo rural e das comunidades tradicionais, como faxinalenses,
benzedeiras e quilombolas.
Segundo Nascimento (2007), esta
manifestação “folk-religiosa” de procedência medieval é um exemplo de
resistência cultural, uma vez que, mesmo com o crescimento das cidades e
racionalização do pensamento, ainda existe e persiste em certas regiões.
Mesmo se restringindo ao contexto
paranaense, as formas de celebrar romaria apresentam variações que demonstram a
diversidade da prática. No entanto, a
principal característica é a dança, que consiste em fileiras organizadas
por gênero (homens e mulheres),
coordenadas por tocadores de violão, seguidas de cantadeiras e demais devotos,
que dançam e cantam em frente ao altar, composto primeiramente pela imagem de
São Gonçalo.
Feito este paralelo com a Romaria
de São Gonçalo, no que tange à Recomendação das Almas, outras variantes
regionais são marcadas pela participação ou não de crianças, de mulheres, no
tipo de cantigas, embora todas geralmente lúgubres, etc.
Meira (2017) traz o relato da Dona
Sebastiana Ferreira Ribeiro sobre o teor de um destes cantos ou rezas: “Deus
te salve cruz bendita, cruz de Deus nosso senhor é uma cruz tão venturosa, dom
de deus nos inspirou, acordai irmão devoto para fazer suas penitencias, rezamos
um pai nosso junto com ave Maria. Pai nosso, Ave Maria, havemos de rezar. Daí
é rezado a Virgem Dolorosa. Oh Virgem Dolorosa, que no pé da cruz está tudo
lastimosa, bendito sejais, bendito sejais Senhora das Dores, ouvi nossos rogos,
mãe dos pecadores. Acorde irmão devoto para fazer suas penitencias, acorda
e fica de joelho rezando o Pai Nosso e Ave Maria. É rezado ao senhor Deus: Senhor
Deus misericórdia, misericórdia Senhor, Senhor Deus por Maria Santíssima,
misericórdia Senhor, repetindo várias vezes, Senhor Deus, Senhor Deus, Meu
senhor, Misericórdia Senhor...”.
Até mesmo no aspecto religioso há
variantes. Alguns estudos, como o apresentado por Nascimento(2007), consideram
que se canta PARA as almas. Outros indicam que se reza em FAVOR das almas.
Esta distinção pode parecer
meramente gramatical, mas tem um forte sentido semântico e religioso. Ao cantar
para as almas, considera-se que as almas tem consciência, quiçá autonomia para
ouvir e atender as preces ou para se
beneficiar das orações. Ao cantar em favor das almas, considera-se que as almas
estão passivas, dependentes da intercessão. A oração destina-se a uma entidade
maior (Deus, Jesus, Maria – Nossa Senhora), que as beneficiará, perdoará e as
encaminhará.
Assim, independente do aspecto
religioso, a recomendação é uma manifestação que expressa a riqueza cultural
das regiões e as especificidades de seu povo e que merece ser preservada e
sobretudo valorizada.
Reacender esta tradição seria um
resgate cultural de uma prática antiga, com raízes medievais, sincretizada com
raízes africanas, talvez cabocla, que ao
se misturar com o contexto brasileiro, deu origem a uma manifestação própria,
com significados próprios.
Mas mesmo no Brasil, não se trata
de uma prática única. Embora com princípios gerais, a recomendação é (era) rica
em variantes regionais atreladas ao contexto e aos valores locais, ao espírito
de comunidade, etc.
Reviver esta tradição seria também um resgate cultural e
uma forma de resistência, porque sendo marcada por um contexto rural, com o êxodo
de muitas famílias para a zona urbana, em busca de melhores condições de vida,
os membros mais antigos do grupo familiar conseguiram manter, mesmo neste
ambiente urbano, com sua dinâmica própria, esta manifestação, verificando,
porém, que os sucessores, em geral, não deram continuidade ao ofício.
Ressalta-se que no grupo existente
em Rebouças, por volta dos anos de 1990 (quando ainda ocorria a prática), a
maioria dos integrantes eram pessoas de idade elevada, e com o falecimento
destes atores, não houve continuidade da tradição.
Pesa ainda o fato de que, por ser
uma tradição tipicamente rural, repassada de forma oral, em uma época de pouco
acesso aos meios de documentação, exercida por pessoas humildes, às vezes
iletradas, e com diferenças regionais, não se tem muitos registros sobre o
assunto em nível local. Predominam os relatos. Videos com a prática são raros.
Destaco o citado por mim no início do texto, porém, desta apresentação para cá,
se passaram em torno de 30 anos. Há talvez ainda resquícios das cenas na
memória de poucos.
Assim, as mudanças sociais,
econômicas, a urbanização, a institucionalização da fé, o desencantamento da
quaresma, a vida noturna e suas luzes, toda essa dinâmica moderna enfraqueceu a
prática e retirou o caráter misterioso da Recomendação das Almas.
José Carlos Pereira (2005), em seu
livro “O Encantamento da Sexta-feira Santa – manifestações do catolicismo no
folclore brasileiro” retrata muito bem essa dinâmica de desencantamento com as
tradições místico-religiosas e da desintegração do rural, da magia que residia
no imaginário popular, repleto de elementos folclóricos.
Isso demonstra que as pessoas do
interior, sobretudo humildes e “simples” são detentoras de conhecimentos e
culturas que muitas vezes são ignoradas pelo restante da população e que acabam
se perdendo. Uma cultura rica, com significados, uma forma de saber, que se
perde se não houver iniciativas de resgate.
Não se trata de fechar
hermeticamente estas práticas, colocando-as livres das influências modernas,
mas de resgatá-las e preservá-las como parte do patrimônio cultural.
A origem da palavra patrimônio,
para Horta (1999) é do latim, e é derivada de pater (pai). O patrimônio
cultural constitui a riqueza e a herança de um povo, é o conjunto de bens
culturais, é um tesouro à sociedade, que revela a cultura recebida das gerações
anteriores, o que mantém estreita relação com o conceito de tradição.
De acordo com Lima (2013), as
tradições podem ser mantidas, mesmo que reconfiguradas. Inclusive, muitas das
práticas podem ser interpretadas para além de seu significado religioso ou
histórico, mas sob o prisma da resistência cultural e da formação de espaços de
lazer, de sociabilidade, de encontros. As festas juninas, o Carnaval, o rodeio
crioulo, são exemplos de eventos que têm um fundamento histórico, religioso,
cultural, econômico, de condições de vida de determinada época, e hoje são
eventos populares e de lazer, especialmente para aqueles que assistem ou
participam em tom mais espontâneo.
Assim podemos afirmar que o ritual
da Recomendação das Almas (assim como a Romaria de São Gonçalo) apresenta-se
como espaço para espiritualidade, mas também como espaço para o lazer, para
estabelecer novos laços de sociabilidade e solidariedade ou fortalecer os já
existentes, reforço dos valores hierárquicos e até formas de ostentação.
Ainda para Lima (2013), o lazer é o
espaço da liberdade, no qual as pessoas podem demonstrar seus sentimentos,
desenvolver sociabilidades e solidariedade, expressar suas emoções, brincar,
manifestando seus costumes coletivamente em um mesmo espaço.
Enfim, resgatar e documentar esta
prática, especialmente aquela especificamente realizada em Rebouças, poderia
ser uma empreitada não apenas de historiadores ou de estudos acadêmicos, com a
finalidade de registro histórico, mas se poderia ir além.
Ao invés de apenas documentar um
fato que ocorria, seria possível envolver grupos sociais organizados, sobretudo
aqueles relacionados com os aspectos culturais, com as ruralidades, com as
práticas sociais e solidárias e reviver estas formas de tradição, tanto sob o
aspecto da religiosidade, quanto sob o aspecto cultural, histórico, mas também
de lazer, de convivência, de solidariedade, de resistência, de identidade de
grupo.
Secretarias de Cultura (embora seja um tema transdisciplinar), grupos de terceira-idade, movimentos de povos tradicionais, benzedeira, etc. poderiam ser envolvidos no resgate.
Fonte: google imagens |
No município de Rebouças – PR, especialmente na comunidade do Barreiro, e nas comunidades Faxinalenses do Salto e do Marmeleiro, ocorria uma espécie de manifestação popular, de caráter religioso, chamada de recomendação das almas.
Segundo o site embu.art.br, esta manifestação se fundamenta na crença católica do purgatório e da eficácia da oração para encaminhar as almas dos falecidos ao descanso eterno e à salvação. Daí a tradição que das épocas medievais nos ficou, de rezar e pedir pelas almas do purgatório, ritual ainda subsistente institucionalmente na Igreja Católica. O povo, porém, desejando participar dessas orações, independentemente da igreja, criou o fato folclórico – a Recomendação de Almas.
O site Jangada Brasil conta que, em 1515, na cidade de Coimbra, os encomendadores “no silêncio da noite, ao som de uma campainha, despertavam os cidadãos com terríveis vozes”. Além da antiga origem ou influência católica, especialmente portuguesa, outros estudos apontam a influência africana, quando no período escravocrata e posteriormente, se mantendo em algumas comunidades quilombolas, a Recomendação das almas era realizada.Segundo Paes e Souza (2007) com a decadência da mineração, no final do século XVIII, muitos escravizados foram abandonados ou alforriados, transformando-se em camponeses, autônomos do ponto de vista econômico e religioso. O poder religioso era independente do clero oficial e concentrava-se nas mãos de leigos. Dessa forma, desenvolveu-se um catolicismo popular marcadamente diferente do catolicismo romano e repleto de influências africanas, e a Recomendação das Almas era uma de suas práticas.
Os jesuítas também foram atores nesse processo de formulação cultural. Ainda para Paes e Souza (2007) eles contribuíram com a introdução da manifestação no Brasil. Como o presente texto não objetiva, de forma alguma, fazer uma reconstrução histórica da prática no Brasil, tampouco, chegar a sua gênese, se buscará então dar uma visão geral, simplificada e local (região de Rebouças –PR), do que se constitui a prática da Recomendação das Almas, também denominada de Lamentação, Encomendação, Recomenda; terno [das almas], etc. e especialmente, relembrar do caráter devocional que movia os participantes para essa prática, mas sobretudo, destacando a necessidade do resgate dessa prática pela sua importância enquanto manifestação cultural e de sua relação com o modo de vida de diversas comunidades, especialmente rurais.
Superando o caráter religioso, fatores como a vida rural que predominava na região, o respeito às tradições, repassadas de geração em geração, a religiosidade do povo, a simplicidade e a fé, são elementos que tem significado também sob o ponto de vista cultural.
Essa manifestação, apesar de ser realizada em alguns velórios, ocorria principalmente nas quartas e sextas-feiras de quaresma, quando um grupo de pessoas saia pelas ruas cantando (ou rezando) algumas cantigas lúgubres, chegando em algumas casas. Comenta-se que o grupo de pessoas visitava as casas que tem crucifixos de madeiras pregados nos portões, orando e cantando em frente às residências, e o morador, com a casa totalmente fechada, após o término do rito os acolhe. São visitadas várias casas por noite (fala-se de cumprir as 7 estações), o que inclui cemitérios e capelas, definidas pelo capelão (líder do grupo).
Destaca-se que o capelão é o responsável por coordenador o ofício e dirigir os demais rezadores, substituindo a figura de um religioso oficial.
Entre outras variantes regionais, que vão desde o nome (encomenda, recomenda, terno, etc.), até as vestes (cabeça coberta ou não), em algumas regiões os recomendadores usam instrumentos musicais. Entretanto, o mais comum, citado em quase todas as fontes e verificado in loco na região tomada como exemplo, está a matraca, utilizada pelo capelão para marcar o início do terno e pedir as orações. Outras variantes regionais está na participação ou não de crianças, de mulheres, no tipo de cantigas, todas geralmente lúgubres, etc.
Um artigo que demonstra algumas das variações regionais da procissão pode ser encontrado no link a seguir. Trata-se do texto Encomendação das Almas: resistência cultural em São Roque de Minas, o que pelo próprio título indica que enfatiza a variante da prática realizada na região, mas sem deixar de traçar aspectos gerais.
Até mesmo no aspecto religioso há variante. Alguns estudos, como o acima citado, consideram que se canta PARA as almas. Outros indicam que se reza em FAVOR das almas. O vídeo abaixo traz um exemplo desta manifestação realizada na Comunidade Quilombola Paiol de Telhas, em Reserva do Iguaçu - PR.
Assim, independente do aspecto religioso, é uma manifestação cultural, que a expressa riqueza cultural das regiões e as especificidades de seu povo e que merece ser preservada e sobretudo valorizada, pois seria um resgate cultural de uma tradição antiga, pois a maioria dos integrantes do grupo eram pessoas de idade elevada e as mudanças sociais, econômicas, a urbanização, a institucionalização da fé, o desencantamento da quaresma, como cita José Carlos Ferreira (no livro em link Encantamento da Sexta-Feira Santa - manifestações do catolicismo no folclore brasileiro, que merece ser lido), a vida noturna, a urbanização e suas luzes, enfraqueceram a prática e retiraram o caráter misterioso da prática.
Isso demonstra que as pessoas do interior, sobretudo humildes e “simples” são detentoras de conhecimentos e culturas que muitas vezes são ignoradas pelo restante da população e que acabam se perdendo.
Não se trata de fechar hermeticamente estas práticas, colocando-as livres das influências modernas, mas de resgatá-las e preservá-las com parte do patrimônio cultural.
O blog Cultura digital relembra que podemos afirmar que o ritual da Recomendação das Almas apresenta-se como espaço para espiritualidade, mas também como espaço para o lazer, para estabelecer novos laços de sociabilidade e solidariedade ou fortalecer os já existentes, reforço dos valores hierárquicos e de gênero e até formas de ostentação.
Enfim, é uma das muitas práticas que os grupos sociais organizados, sobretudo aqueles relacionados com os aspectos culturais, com as ruralidades, com as práticas sociais e solidárias, secretarias de cultura, grupos de terceira-idade, e até mesmo religiosos, poderiam se envolver e resgatar.
Muito bom!
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