Tradicionalismo gaúcho no Paraná

Mesmo em Irati, uma cidade marcada pela presença de descendentes de imigrantes europeus (que povoaram os três estados do Sul, em suma) e de migrantes, especialmente do Rio Grande do Sul, (como muitas das cidades erigidas ou influenciadas pelo Tropeirismo), e mesmo considerando que temos um dos maiores rodeios crioulos do Brasil, perguntar se “existe gaúcho nascido no Paraná” pode parecer uma indagação muito estranha. Afinal, paranaenses são os habitantes do Paraná, e gaúchos, os habitantes do Rio Grande do Sul.

Mas o fio que causa o enredo é que historicamente as coisas nem sempre foram assim.

O termo “gaúcho” se refere não somente a um povo, ou a um gentilício, mas a um modo de vida que antecede a atual divisão política dos estados. Aliás, tudo depende do contexto em que se aplica determinada palavra (eis a riqueza da Língua), sem mencionar ainda as influências culturais que não conhecem fronteiras, que se mesclam, se transformam, que originam outras manifestações, etc.

O texto que se segue buscou, a princípio, responder esta pergunta: Existe gaúcho nascido no Paraná ?

Para tanto, esboçou como justificativa o fato de que uma das aplicações do termo "gaúcho" serviu historicamente como designação para os povos que habitavam a região dos pampas, não tendo nenhuma relação com a atual divisão política dos estados do sul, nem mesmo do Brasil, já que abrangia terras do Brasil, da atual Argentina e Uruguai.

Figura 01 – Região dos Pampas
Fonte da imagem: Wikipedia


Ou seja, existem muitas formas de regionalizar e caracterizar determinado lugar e o povo que o habita, e no caso das fronteiras políticas, em praticamente todos os países elas mudaram ao longo do tempo, porém a cultura e as interações entre os povos nunca estiveram circunscritas a qualquer definição arbitrária (política) de território.

Ademais, as populações não se fixam permanentemente em um território e tampouco se restringem a ele as influências culturais. Os processos de migração foram significativos. E soma-se ainda que no Brasil, pela história de colonização, a cultura é formada por diversas fontes, passando pelos indígenas (grupos diversos e com costumes diversos), habitantes originais destas terras, imigrantes de diversas origens, além dos africanos trazidos forçadamente para o país.

O presente texto também buscou contemplar a dinâmica dos aspectos culturais e como se dá a transmissão através dos contatos entre os povos, citando como exemplo o Tropeirismo (e o caminho das tropas, que levava mercadorias, informações e cultura), as formas de arte (como as danças e as músicas, que desconhecem fronteiras) e as migrações, inclusive as mais recentes, promovendo um intercâmbio cultural.

Podemos até mesmo fazer uma analogia ao que ocorre com a nacionalidade segundo a atual Constituição Federal. De acordo com a Carta Magna, filhos de pais brasileiros, mesmo nascidos no exterior, são brasileiros quando registrados em repartição brasileira. Da mesma forma, são brasileiros os filhos de estrangeiros que nascerem no Brasil, salvo algumas exceções. Ora, filhos de sul-rio-grandenses (para não confundir não usarei o termo gaúcho), nascidos no Paraná, são paranaenses ou gaúchos ? Um filho de um turista paranaense que nasça em solo do Rio Grande do Sul é gaúcho ou paranaense ?

Enfim, as coisas nem sempre são explicadas com um sim ou não, especialmente quando ao longo da discussão, novos elementos e pontos de vista são misturados.

Ressalta-se ainda que os tradicionalistas, como também são denominados (embora haja margem para diferenciação entre tradicionalista e gaúcho), preservam a tradição não de um estado (Rio Grande do Sul - circunscrito a uma fronteira arbitrariamente definida), mas de um povo, de um modo de vida específico, com seus valores, que condiziam com a realidade social, econômica, política e cultural vivida na época.

Há uma valorização das raízes, as quais guardam diversos traços em comum com as do paranaense.

Sul riograndenses e paranaenses, para citar apenas dois exemplos, mantém valores e tradições rurais e campeiras em comum, guardam uma colonização e uma forma de povoamento com traços semelhantes (conforme a escala de observação), e como brasileiros, guardam uma história e uma língua em comum. Soma-se ainda que certas atividades, como a pecuária, a lida campeira, são comuns à maioria dos povos, embora com características peculiares.

Assim, não deveria causar estranheza o valor que muitos paranaenses dão às tradições “gaúchas”, da mesma forma que ninguém estranha o fato do Brasil inteiro, em uma suposta identidade nacional, fazer do Carnaval uma festa de todos, embora suas raízes, originalmente, não estejam na maioria dos estados.

O Carnaval, a título de conhecimento, tem sua origem na Idade Média (embora com influências mais antigas). Chegou ao Brasil no Período Colonial com os portugueses, por volta do Século XVI, tendo suas primeiras manifestações no Rio de Janeiro.

As interações culturais podem ocorrer ainda em virtude das migrações e imigrações, como focos de resistência diante de um contexto cultural diverso. A reunião em CTGs de gaúchos que migraram para o Norte pode ser um exemplo. A imposição da religião Cristã aos indígenas é um caso de assimilação cultural forçada, entre outros.

Além de que, podemos citar muitos exemplos de assimilação cultural ou aculturação (sem entrar no rigor sociológico dos termos), que pouco ou nada mantém de raízes históricas conosco, mas que são plenamente aceitas e cultivadas em praticamente todo o Brasil, como o movimento punk e metaleiro (com raízes na Inglaterra e nos Estados Unidos), dia das bruxas (Halloween), etc.

Isso para não se aprofundar na questão das culturas importadas e daquelas que surgem como modismos, transplantadas e direcionadas às massas, e não socialmente construídas por elas, com significado e riqueza.

De acordo com Luvizotto (2010), a sociedade atual fundamenta‑se no distanciamento e aproximação entre o local e o global. Nas palavras de Anthony Giddens (2002), quando a tradição perde espaço, mais interações dialéticas entre o local e o global ocorrem e mais os indivíduos são encaminhados a diferentes estilos de vida, trazendo como consequência a heterogeneidade sociocultural.

Correntes sociológicas consideram também o multiculturalismo e o hibridismo cultural, levando em conta a dinâmica de transformações que ocorrem, sobretudo em um contexto de globalização e de transmissão cada vez mais intensa de informações.

Isso leva a se perguntar se a heterogeneidade cultural, considera por alguns, como riqueza cultural, de fato não é uma forma de enfraquecer a cultura raiz ao trazer alternativas das mais variadas possíveis, porém, sem fundamento e sem bases históricas com o povo que a recebe.


A OCUPAÇÃO HISTÓRICA DO PARANÁ

É comum em muitas cidades do Paraná, por exemplo a apreciação por parte das pessoas, da cultura gaúcha, seja através da associação em CTGs (invernada campeira ou artística), seja apreciando a música regionalista, os bailes, cavalgadas ou outros costumes como o chimarrão e o churrasco.

Lembremos, porém, que mesmo dentro dos limites territoriais do Paraná, temos uma heterogeneidade cultural.

Segundo Milan e Cruz (2010), a historiadora Roseli Boschilia, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em artigo publicado na Gazeta do Povo intitulado “Procura-se uma identidade perdida entre gaúchos e paulistas”, divide o estado do Paraná em pelo menos três territórios distintos que vivem quase que de maneira autônoma, o que quer dizer que todos são paranaenses, mas cultivam um estilo de vida bem diferente.

A primeira ocupação é a do Paraná tradicional (Curitiba e litoral): são paulistas que vieram da região de São Vicente (SP) e passaram a ocupar o Primeiro Planalto ou Planalto de Curitiba (ou ainda Planalto Cristalino) e cultivaram seu estilo de vida nesta região.

Depois o Paraná recebeu uma leva de migrantes do Sul (Rio Grande do Sul) vinculados à atividade do Tropeirismo. Eles têm um modo de falar, de se vestir e de se alimentar totalmente diferente dos primeiros e se estabeleceram na região da Lapa e Campos Gerais, explica Roseli.

Geograficamente, podemos ilustrar como sendo uma ocupação no chamado Segundo Planalto ou Planalto de Ponta Grossa. Esta unidade faz parte da Depressão Periférica do Planalto Meridional. Frisa-se aqui a Geomorfologia da localização, pois até este fator tem influência no modo de vida de um povo, e consequentemente, na cultura.

Uma terceira ocupação acontece por volta dos anos de 1940 e 1950, no Oeste: são os gaúchos que migraram por conta da inviabilidade da estrutura fundiária. Conforme Simon (2009), uma característica do Sul do país foi a divisão equânime das terras rurais, tanto que Rio Grande do Sul e Santa Catarina ainda hoje se diferenciam do resto do país pelo maior número de pequenas propriedades e consequentemente maior renda média dos agricultores.

Segundo Simon (2009), o pequeno lote colonial propiciou às comunidades desenvolverem uma produção para subsistência, explicando a adoção da policultura. Porém, em média, as propriedades tinham 25 hectares e a divisão entre vários filhos herdeiros inviabilizaria a sustentação econômica de qualquer um deles. Assim, aos demais filhos a opção foi buscar novas possibilidades migrando. Primeiramente, para Santa Catarina, depois para o Paraná. Nos anos de 1960 e 1970 os filhos de gaúchos nascidos em Santa Catarina ou no Paraná também migraram pelo mesmo motivo, abrindo frentes agrícolas em todo o país, e com isso, levando seus costumes, cultura e tradição.

Há ainda uma quarta ocupação que os historiadores chamam de Norte Pioneiro Novo: foi a região “tomada” por fazendeiros de São Paulo.

Finalizam Milan e Cruz (2010), dizendo que até os anos 60, o Paraná não tinha todo o território ocupado. Por isso é difícil criar uma identidade cultural, principalmente única. Ao contrário, é forte o contato com Paulistas em certas regiões, e com sul riograndenses, especialmente na região dos Campos Gerais ou do Segundo Planalto, usada com corredor de tropas na época do Tropeirismo.

Mas o que leva os paranaenses a cultuar as tradições (rodeio, danças, chimarrão, churrasco,), costumes e valores atribuídos aos gaúchos? E essas manifestações são hermeticamente gaúchas, ou melhor, são sul riograndenses ?


A CULTURA E A TRADIÇÃO

Diante do exposto, verifica-se que a cultura é influenciada por diversos fatores. Ela não obedece a fronteiras políticas, mas se relaciona com o passado histórico que alicerçou a ocupação de território.

Território onde se assenta determinado povo, e apesar de haver individualidades, mantém aspectos em comum que cristalizam sua identidade.

E vai além, se refere às bagagens imateriais (e porque não materiais) que as pessoas levam e trazem ao se deslocarem de um lugar para outro e que se modelam segundo as visões subjetivas de mundo de cada sujeito, o qual está em constante interação com outros.

Segundo Canedo (2009), sociologicamente, a cultura expressa o conjunto de saberes e tradições de um povo produzidos pela interação social entre os indivíduos e grupos de uma comunidade ou sociedade.

Este mesmo autor explica que os significados semânticos de cultura são diversos, e que o termo, por ser multidisciplinar, recebe um enfoque específico conforme o contexto.

Para resumir, a palavra cultura advém do latim e tem significados diversos como habitar, cultivar, proteger, honrar, e em muitos contextos se mescla com o conceito de tradição, podendo, portanto, para fins deste texto, serem usados ambos de forma indistinta.

Tradição, de acordo como site Origem da Palavra, vêm do Latim traditio, um derivado de tradere, que significa entregar, passar adiante. E este verbo se formava pelo prefixo “trans”, no sentido de além, adiante, mais a raiz “dare”, significando dar, entregar. Assim, Tradição atende ao significado de “passar algo a alguém”, como costumes, cerimônias, hábitos, características de um grupo, etc.

Luvizzoto (2010), entende a tradição como um conjunto de sistemas simbólicos que são passados de geração a geração. A tradição é dinâmica e não estática, uma orientação para o passado e uma maneira de organizar o mundo para o tempo futuro.

Citando Hobsbawm e Ranger (1997), Luvizzoto (2010) explica que a tradição é uma invenção construída em algum lugar do passado, podendo ser alterada em algum lugar do futuro.

É justamente o estudo histórico que nos permite conhecer a sequência dos fatos que explicam a relação de um povo com sua cultura, cabendo talvez à sociologia dar luz a respeito dos fatores que impulsionam essa relação entre cultura, povo, território de abrangência e período histórico em que ela se materializa.

Quanto mais intensa tem se tornado as comunicações entre as pessoas, graças às inovações e à popularização das tecnologias, mais somos continuamente bombardeados (talvez ainda a TV tenha destaque) com “torrentes culturais” cada vez mais massivas.

Ao mesmo tempo que temos a possibilidade de conhecer a cultura de diversos países, lugares, povos, e enriquecer nosso repertório, essa cultura nos é repassada de modo superficial, de modo vago, sem os fundamentos que lhe dão sustentação, sentido e valor. São uma informação, talvez um conhecimento, mas não uma tradição.

Pior ainda quando estas culturas são transmitidas carregadas de ideologia, que lhes descaracterizam ou lhes embutem intencionalidades. Quantas vezes vemos na TV o caipira ser retratado como ingênuo, como retrógrado ou desajustado ?

Atualmente, o sertanejo, personificado nos cantores (que estão mais para pop) adquiriu outro caráter, justamente em um período que o retorno ao rural (especialmente nos finais de semana) é valorizado como forma de fugir dos problemas e da rotina urbanos. Basta ver o crescimento da procura por instâncias hidrominerais, por parques ecológicos, por fazendas, passeios na natureza ou outras opções similares.

Hoje, o jovem urbano andar de botina e chapéu, em alusão ao agro, é mais do que um gosto pessoal de moda ou de estilo. É a absorção de um conjunto de elementos que são socialmente valorizados e oferecidos a ele, que vão desde a moda, a música, o estilo de vida, etc. E isso tem uma intencionalidade por parte de quem transmite esse “modismo”.

Dialeticamente, essa carga ideológico-cultural a que temos contato, ao invés de fortalecer nossa cultura pela apreciação de suas especificidades e sentido particular que damos a ela, como elemento de diferenciação e de valor histórico, acaba a enfraquecer nossas raízes.

Torna mais fácil a assimilação de uma cultura de massa (denominada de indústria cultural), comercial, com interesses, que substitui a cultura que historicamente teria sentido para determinado povo, que historicamente estaria vinculada com as raízes de determinado lugar, embora, em hipótese alguma se possa afirmar que a cultura seja rígida e estanque e não sofra mudanças.

Até porque muitas tradições podem não ser socialmente (aos olhos modernos) corretas. Podem ser elementos que reforçam comportamentos hoje inaceitáveis, como maus tratos aos animais (touradas, alguns tipos de caça, e até mesmo o rodeio sofre críticas), machismo, preconceitos, discriminações, às vezes de cunho social (castas na Índia) ou religioso.

Segundo Barbosa Lessa, citado por Zalla (2008), sociólogos de renome afirmam que a desintegração social, característica de nossa época, é devido a dois fatores:

Primeiro: o enfraquecimento das culturas locais;

Segundo: o desaparecimento gradativo dos "Grupos Locais", comunidades transmissoras de cultura e de valores e ideais comuns, cabendo aos CTGs o papel cultural e político outrora específico desses grupos.

E foi justamente nesse sentido a intenção de formar os CTGs – centros de tradição gaúcha. O mesmo sentido que João Cezimbra Jacques visava ao fundar, em 22 de maio de 1898, em Porto Alegre, o Grêmio Gaúcho, precursor do Movimento Tradicionalista Gaúcho.

Continuando nas palavras de Lessa, citadas por Zalla (2008), para que um grupo social se estruture como unidade, é necessário que haja coletividade nos modos de agir e de pensar de seus indivíduos. E isto é conseguido através da "herança social" ou da "cultura" ou mesmo da tradição enquanto forma de repasse de geração em geração desta cultura.

É pela cultura comum que os membros de uma sociedade possuem a unidade psicológica que lhes permite viver em conjunto, com um mínimo de harmonia e identidade.

A cultura tem como uma de suas finalidades adaptar o indivíduo não só ao seu ambiente natural, mas também ao seu lugar na sociedade, pois indica ao indivíduo, desde a infância, as maneiras como comportar-se na vida grupal. E graças à tradição, essa cultura se transmite, capacitando sempre os novos indivíduos a uma pronta integração na vida em sociedade.

Ou seja, a cultura e a tradição desempenham um papel fundamental na resistência ao individualismo, característica da atual sociedade, bem como na superficialidade dos conteúdos culturais, que norteiam comportamentos nem sempre condizentes com as necessidades e valores do contexto, mas são absorvidos como forma de modismos.

Também coloca um contraponto ao processo de globalização, no sentido de que mostra o real valor dos elementos locais e específicos de um povo, do passado histórico (que forja uma individualidade), das lutas e resistências, de seus valores, de sua identidade, evitando a superficialidade e o vazio das culturas de massa (que creio não se confunde com cultura popular, pois não são feitas pelo povo em suas relações espontâneas, mas são comercialmente produzidas e intencionalmente direcionadas para a massa).

E é neste sentido que o Paranaense se enquadra nas tradições rurais e campeiras que compartilha em comum com o povo do Rio Grande do Sul. Afinal, nem a cultura sul riograndense nem a paranaense se formaram autonomamente, mas foram socialmente construídas, e as raízes de ambas têm sementes em comum.


A CONTRIBUIÇÃO INDÍGENA DO QUE É O SER GAÚCHO

E aqui entramos na questão chave. Paranaense pode ser "gaúcho"? Todo rio-grandense-do-sul é gaúcho ? O que é ser "gaúcho"? Qual concepção do termo eu considero válido? E talvez, a dúvida mais importante: quais os traços específicos que caracterizam a cultura própria do paranaense ? Se é que podemos falar em uma única cultura dada as especificidades regionais, históricas e culturais que afetaram a formação do Paraná.

E as indagações e reflexões não param. Quais os pontos que o paranaense guarda em comum com a cultura do Rio Grade do Sul, dita gaúcha? E a cultura gaúcha é puramente do Rio Grande do Sul? E aqui retomo a perspectiva de que a atual divisão política dos estados brasileiros é muito mais recente que a formação dos elementos culturais dos povos que habitam tais territórios.

Além dos pontos em comum relacionados com a atividade rural, como a criação de gado nas estâncias, palavras como piquete (pequeno potreiro, ao lado da casa, onde deixa ao pasto os animais utilizados diariamente) e invernadas (grande extensão de campo cercado), guri, peleia, mate, entre tantas outras são tão comuns a nós quanto a qualquer gaúcho. Há também fatores físicos como o clima (subtropical), tem-se ainda a ocupação histórica dos territórios, etc.

Destaca-se que o Sul do Brasil foi povoado por habitantes originais em comum. Embora não seja o objetivo pormenorizar aspectos da cultura dos povos indígenas (habitantes originais da região), os exemplos a seguir ilustram que eles não estavam restritos a nenhum território politicamente delimitado como hoje conhecemos, muito menos estavam contidos nos territórios ocupados por eles os aspectos de sua cultura.

Ademais, sequer podemos falar em cultura única, pois muitas destas etnias eram divididas em tribos, inclusive com línguas diferentes, que ao longo da história interagiram; e o território foi sendo ocupado por outros grupos, inclusive pelo colonizador europeu.

A região Sul, por exemplo, era ocupada pela etnia Guarani (Tupi-Guarani), que se estendia por grande parte do território brasileiro (mais próxima ao litoral), além de Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia; por indígenas da etnia Jê (ao qual pertencem os Kaingangs e Xoklengs), que habitavam regiões do interior; além dos Charruas.

Os Charruas, segundo Precht e Timm (2011), habitavam a porção oriental do Uruguai e os pampas argentino e sul-riograndense. Eram semissedentários, se locomovendo pelo território conforme as estações do ano, o que os colocava em interação com outras tribos, muitas vezes conflituosa.

Além destes, habitavam os povos Minuano, índios patagônicos pertencentes à etnia Charrua, mas que ocupavam o Sudoeste do Rio Grande do Sul, bem como parte da Argentina e Uruguai. Eles inspiraram o nome do vento frio que sopra no Rio Grande do Sul, da direção sudoeste, depois das chuvas de inverno.

Conforme o glossário da história luso-brasileira, na página do Arquivo Nacional, ao longo dos séculos XVII e XVIII, os Charruas passaram a ter contato com o colonizador espanhol, ao passo que os Minuanos interagiram com os portugueses que estavam no Rio Grande de São Pedro (divisão administrativa da época Colonial) e na Colônia do Sacramento (atualmente, território Uruguaio).

Este contexto mostra que, vindo parte das tradições gaúchas dos povos indígenas, estes, por sua vez, já tinham sua cultura influenciada pela interação entre tribos e pelo contato com o colonizador, que também espalhou sua cultura em tantos outros lugares do território brasileiro.

Ainda segundo o Arquivo Nacional, após a introdução do gado pelos europeus, Charruas e Minuanos passaram a praticar a preia destes animais nas vacarias (campos de gado selvagem).

A introdução do cavalo na região remonta à fundação de Santa Fé da Vera Cruz por volta de 1500. Originalmente, os equinos foram empregados como meio de transporte e montaria para a caça, além de ser utilizado como moeda de troca. Os Minuanos, em particular, destacaram-se como habilidosos cavaleiros.

Sendo assim, não seria absurdo dizer que a cultura e a tradição vão sendo construídas a partir de fragmentos de práticas e de valores distintos, assimilados por um povo, valorizados, transmitidos, e novamente reabsorvidos, agora com inclusões e exclusões de componentes, em consonância com o contexto histórico, político, social, econômico, físico-geográfico, que facilita ou dificulta a manutenção destas práticas. Embora seja inegável que o contexto é mutável, e, portanto, a cultura não será estática.


A IMPORTÂNCIA DO CONTEXTO

Segundo artigo de Nilo Bairros de Brum (1968), quase sempre que discutimos sobre a essência de alguma coisa, estamos na verdade discutindo sobre as circunstâncias de aplicação de uma palavra. É algo tão complexo que N teses científicas buscam contemplar a complexidade e variabilidade semântica das palavras, muitas vezes sem chegar a uma conclusão absoluta.

Por isto, ao invés de tentar definir que o gaúcho é isto ou o gaúcho é aquilo, é mais profícuo esclarecer as circunstâncias históricas, geográficas e culturais em que a palavra é aplicada.

Destarte, uma abordagem necessária é adentrar na etimologia da palavra gaúcho. Diversas fontes, como o Portal das Missões, para citar uma das tentas disponíveis, apontam que a palavra seria uma corruptela de Huagchu, de origem Quêchua, traduzida por “guacho”, que significa órfão e designaria os filhos de índias com brancos portugueses ou espanhóis, cuja paternidade nem sempre fica clara nos registros eclesiásticos.

Segundo texto contido no blog do CTG Sentinelas do Pago, gaúcho, em outro período histórico, passa a ser também a denominação dada às pessoas ligadas à atividade pecuária em regiões de ocorrência de campos naturais (Pampas) do Vale do Rio da Prata.

Segundo o site Estância Virtual, Paixão Cortes cita que a primeira literatura que trouxe a palavra gaúcho, foi em 1851, e definia como “índio do campo, sem domicílio certo”. O uruguaio Fernando Assunção, no seu livro “El Gaucho”, de 1963, relata o primeiro registro da palavra gaúcho (gaucho em espanhol, pronuncia-se, portanto, mais ou menos como “gáutio”) em documento que data 23/10/1771, livro no qual ele aponta em torno de 30 possíveis origens para o termo.

O termo gaucho, em espanhol, também contribui para demonstrar que em sua origem, a palavra não mantinha relação com fronteiras políticas (tampouco do que hoje denomina-se de Rio Grande do Sul), mas era relacionada com um modo de vida compatível com um contexto próprio.

Assim, as peculiaridades do seu modo de vida pastoril teriam forjado uma cultura própria, derivada do amálgama da cultura ibérica e indígena, adaptada ao trabalho executado nas propriedades denominadas estâncias.

Em consonância com este entendimento, Brum (1968) comenta que a história do Cone Sul ensina que o primeiro grupo de pessoas a quem foi aplicado esse termo era composto de mestiços descendentes de europeus (náufragos, degredados e desertores) e de índias das nações Minuano e Charrua.

Esses mestiços eram nômades que percorriam terras que hoje pertencem ao Uruguai, à Argentina e ao Rio grande do Sul. Não eram súditos de Portugal nem da Espanha; eram homens livres no mais amplo sentido que se possa imaginar. Viviam do abate do gado selvagem, tão livre quanto eles, mas eram tidos como ladrões, pois tanto os portugueses quanto os espanhóis consideravam-se donos das terras e dos gados que nelas viviam.

Outros autores, como Libório Justo explicam a origem do gaúcho como derivada dos changueadores, ou seja, índios ou mestiços sem morada certa, que faziam o serviço de courear o gado ou outros, sob o lombo de cavalos. Outros os chamavam do vagos.

Precht e Timm (2011), tornam ainda mais complexa a questão explanando sobre a ocupação territorial do que hoje se limita ao estado do Rio Grande Sul, trazendo mais detalhes sobre as influências que contribuíram com a formação do povo e do termo gaúcho, explicando que antes da chegada dos primeiros colonizadores europeus, no século XVI, o extremo sul do continente americano era habitado por tribos indígenas, sendo os Charruas (e os Minuanos) e Guaranis algumas delas.


Figura 02 – Evolução da pilcha


Fonte: http://blogdoleoribeiro.blogspot. com/2012/11/a-indumentaria-e-sua-evolucao-no-rs.html


A própria evolução da pilcha gaúcha mostra sua derivação da veste indígena, se confirma no uso dos nomes de algumas peças, como por exemplo, guaiaca e o pala, de origem indígena, e tem elementos usados por outros povos.

A presença Charrua passou a incomodar os colonizadores na época de formação dos Estados Nacionais uruguaio e argentino. Quando os grandes fazendeiros começaram a medir os campos, criar gado e tomar conta da região, cercando propriedades com os aramados, os índios que vagavam pelos pampas passaram a representar uma ameaça, pois invadiam as terras agora privadas.

Esses homens foram os primeiros gaúchos. E é errado dizer que eram uruguaios, argentinos ou brasileiros porque eles de certa forma antecederam essas nações. Portanto, antecede mais ainda qualquer noção de fronteiras políticas estaduais como hoje se define.

Estes posteriormente se transformaram em peões, cangueiros, gaudérios, ou seja, não eram donos das terras, restava-lhes os corredores ou trabalhar para algum patrão. E mais uma vez se reforça que o modo de vida forjou esta cultura, tradicionalmente transmitida até atualidade, embora com outra perspectiva.

Afinal, a compreensão e sentido de gauchismo por parte de quem participa de um CTG nos finais de semana, é diferente de quem tem por ofício a lida de campo, daquele que historicamente é representado por esta tradição. Mais diversa ainda é a visão daquele que somente é espectador de um rodeio ou frequentador de um fandango ou surungo.


O TROPEIRISMO E OUTRAS QUESTÕES HISTÓRICAS

Discutida a questão da etimologia da palavra gaúcho em paralelo com as contribuições dos povos que formaram este elemento, como os indígenas, depois o europeu, sobre as bases materiais de um modo de vida específico (campeiro, digamos assim) e contextualizado no tempo (histórico) e no espaço (geográfico) específico (mas não limitado às fronteiras políticas atuais), é possível ainda esboçar uma explanação trazendo à tona questões históricas, mais especificamente ligadas ao Paraná da atualidade.

Uma delas é a histórica atividade dos tropeiros, que ao irem de Viamão (RS) à Sorocaba (SP) pelo Caminho das Tropas (Estrada Real ou Caminho do Viamão), entrando em contato com diversas culturas e lugares, comerciando e trocando mensagens (recados ou chasque), promoviam uma simbiose cultural.

O Caminho das tropas cruzou o estado do Paraná de sul ao norte, cruzando basicamente o Segundo Planalto, pela região dos Campos Gerais, sendo parte importante da história do nosso estado, além de ter promovido o desenvolvimento de diversas cidades.

Ao longo dos rios, importantes para saciar a sede das tropas, foram sendo estabelecidas cidades. Ainda, nesta região foram sendo formadas fazendas, onde os proprietários adquiriam gado do Sul (Rio Grande do Sul, em geral), engordavam, nas chamadas invernadas, e os revendiam em um comércio rentável nas feiras sorocabanas, em São Paulo, além de atender às necessidades da mineração nas Minas Gerais, tendo em vista que o chamado Ciclo Econômico do Ouro foi mais ou menos contemporâneo ao período do Tropeirismo, no início do Século XVIII.

De antemão, é preciso situar que o Tropeirismo ocorreu em um período paralelo ao Ciclo do Ouro e na vigência da escravidão, conforme pode ser visualizado no esquema a seguir.

De acordo com Furtado (2009) e Silva (2003) e conhecimentos históricos amplamente aceitos e esparsos na literatura, o Tropeirismo ocorreu entre os séculos XVII e XIX, principalmente entre 1730 e 1850. O ciclo do ouro no Brasil ocorreu entre os séculos XVIII e XIX, embora as primeiras descobertas do metal, especialmente no Paraná, tenham sido bem mais pretéritas. A escravidão no Brasil foi oficialmente abolida em 13 de maio de 1888, após anos de luta e resistência dos movimentos abolicionistas.

E aqui precisamos incluir nesta mescla cultural, mais um elemento, que na história do Tropeirismo (e talvez do Paraná e do Rio Grande do Sul) ainda não recebeu o devido destaque e reconhecimento: o negro.

Segundo Gutierrez (2006), os tropeiros do Paraná ao irem negociar gado no Sul, dirigiam-se em companhia de camaradas e escravos, após retornarem seguiam para Sorocaba, em tempo de vender os animais para as colheitas do açúcar e do café em São Paulo.

Figura 03 –Ciclos econômicos contemporâneos ao Tropeirismo
Fonte: o autor


Neste sentido, a assertiva de que o Paraná não tem uma identidade cultural própria precisa ser questionada, pois há muitas contribuições que não receberam ainda a atenção acadêmica e o reconhecimento popular da sua importância, como a participação dos negros no Tropeirismo, e com isso, a contribuição cultural deles em nossa identidade, bem como os reflexos destes aspectos particulares da cultura negra com quem eles interagiam nestes tropeadas.

A imagem 04 ilustra o caminho percorrido pelas tropas, que saíam de Viamão, no Rio Grande do Sul e se dirigiam até Sorocaba, em São Paulo, onde ocorriam as grandes feiras.

Entre as principais cidades do Paraná que tiveram sua origem no Tropeirismo, temos: Rio Negro; Campo do Tenente; Lapa; Balsa Nova; Palmeira; Ponta Grossa; Castro; Pirai do Sul; Jaguariaíva, Sengés, além da importância e contribuição no desenvolvimento e formação de diversas outras cidades, que embora não estivessem na rota principal das tropas, se beneficiaram do desenvolvimento e do maior fluxo comercial na região.

Lembrando ainda que o Tropeirismo não se restringia ao Caminho do Viamão, mas havia muitas rotas alternativas e caminhos secundários que se interligavam a ele.

Imagem 04 - Caminho do Viamão
Fonte: Polo, Cacilda (2010). Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/cadernospde


Ainda podemos chamar à baila outras questões históricas importantes na identidade cultural do paranaense, como por exemplo:

· Guerra do Contestado: tinha como fundo a disputa por terras e a construção da ferrovia entre São Paulo e Rio Grande do Sul. Esta obra atraiu pessoas para a construção e posteriormente em decorrência do uso econômico dela, o que promoveu intercâmbio cultural;

· Revolução Federalista: envolveu os três estados do Sul no início da formação da República. Foi uma disputa entre Pica-paus / Republicanos e Maragatos / Federalistas, tendo como episódio marcante o chamado Cerco da Lapa, no Paraná, cuja resistência deu tempo para que Floriano Peixoto impedisse o avanço dos federalistas que vinham do Sul.

Além destes, tantos outros episódios que promoveram o contato entre os povos da região sul do Brasil, e porque não, da América, e que construíram a identidade do paranaense, bem como, influenciaram naquilo que hoje se define como a identidade do gaúcho. Em outras palavras, as culturas estão em constante interação, e compartilham muitos valores, e muitos elementos materiais umas com as outras, embora possamos ver nuances que marcam a identidade de cada um deles, inclusive a identidade própria do paranaense, que sim, existe, mas quem sabe, precisa ser reforçada.

Até o mate ou chimarrão, famoso ícone cantado e declamado na música e na poesia gaúcha, patrimônio imaterial daquele estado, ao qual se atribui a origem da força e da vitalidade dos índios Guaranis, tem forte presença na cultura do paranaense.

Segundo o site da Câmara Municipal de Curitiba, a produção da erva-mate chegou a representar 85% da economia do Paraná, contribuindo para gerar as condições materiais para a emancipação do estado em 1853, que até então, era província de São Paulo.

Destaca-se ainda que os primeiros registros de uso da erva-mate pelos colonizadores espanhóis se deram na Província Del Guayrá (atual estado do Paraná).

A erva-mate foi tão significativa para o Paraná que até a bandeira apresenta um ramo da árvore. E destacando que seu uso é anterior a chegada do maior volume migratório de gaúchos para o estado, que ocorreu somente por volta de 1940.

Mas obviamente, alguns elementos em comum não fazem com que um povo tenha a mesma cultura ou raiz cultural de outro. Embora possamos dizer que teve forte intercâmbio cultural entre sul-rio-grandenses e paranaenses, que a colonização teve semelhanças, que os elementos europeu, indígena e negro fazem parte da história em comum, que a atividade campeira, o clima, o tipo de povoamento, de ocupação e uso do território são parecidos, o contexto cria suas especificidades.

Assim como as semelhanças aproximam os povos, podemos citar, por exemplo, a indumentária, o sotaque, os conflitos, entre outras particularidades que afastam ou os distinguem. Além de que, há também a questão da escala de observação. Para quem é de fora (outro país) ou desconhece os matizes culturais brasileiras, pode ver o Brasil como uma unidade. Para quem é do Norte brasileiro, pode ver o sul como uma unidade. Mas para quem está, por exemplo, no Rio Grande do Sul, pode apontar diferenças entre quem vive na Serra, na Campanha, na Fronteira ou no centro de Porto Alegre...

Peguemos por exemplo, o acordeom ou gaita ou sanfona. É um instrumento típico da música regionalista gaúcha. No entanto, o forró nordestino também a usa. A música sertaneja de Goiás, de São Paulo, idem. A música italiana também tem relação com o instrumento, tanto que, muitos consideram as melhores marcas de acordeom as de origem italiana.

Assim, além do contexto, do aspecto temporal, da escala, também é importante avaliar a perspectiva com a qual se analisa determinado fenômeno cultural ou social. Elementos isolados não são suficientes para definir ou classificar uma cultura ou tradição.


 A PALAVRA "GAÚCHO" ANALISADA SOB TRÊS PERSPECTIVAS


Brum (1968) defende que a palavra gaúcho pode ser entendida diante de 3 perspectivas: a geográfica, a histórica-geográfica-cultural e a puramente cultural.

A meramente geográfica, tem por base as atuais fronteiras políticas. Ela despreza todo o contexto sociocultural em que o termo foi engendrado, esquecendo que a origem do gaúcho é anterior às definições políticas das atuais fronteiras (dos estados e do país), bem como o fato de que a cultura é dinâmica e não se atém aos limites das fronteiras políticas. Portanto, incompleta.

A palavra "gaúcho" pode ser entendida também em uma perspectiva histórico-geográfica-cultural, talvez a mais adequada por considerar as raízes dos povos que erigiram esta cultura, a história que a impulsionou e as transformações pelas quais ela passou e ainda passa, afinal, a cultura é dinâmica.

Neste sentido pode-se aplicar esse termo às pessoas que habitaram no corredor das tropas, do Rio Grande do Sul a São Paulo, como já citado. É a zona dos Birivas, uma cultura que tem traços gaúchos e caipiras.

A cultura Biriva, por si só, é rica e densa de significado e importância no surgimento de povoados, na economia e na política das regiões por onde os tropeiros passaram. Exemplo dessa cultura são as danças, como o fandango, a chula, a dança dos facões, etc.

Por último, a abordagem puramente cultural, que é a mais ampla, é também a mais complexa, pois segundo ela, a cultura gaúcha pode ser aplicada para designar as pessoas que não nasceram no Rio Grande do Sul nem no corredor cultural das tropas, mas que adotaram a cultura gaúcha por algum motivo.

Esta perspectiva pode ser criticada, de um lado, por não considerar o processo histórico que explica a origem da cultura gaúcha. Ou seja, apresenta semelhanças com a caracterização das culturas voltadas para a massa – transmitidas de forma superficial, sem sentido, sem vínculo com a identidade do indivíduo nem com o passado histórico de determinado lugar.

Exemplificando, é quase como um modismo. Gosto da música gaúcha e começo a frequentar um CTG, ou, adquiro um cavalo e começo a participar de invernadas campeiras.

Por outro lado, nela reside também a maior necessidade de atenção e repousa grande complexidade para uma análise rigorosa e fundamentada, o que não é o objetivo desse esboço.

É preciso lembrar que uma grande faixa dos estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo foi corredor de tropas. As áreas adjacentes sofreram as influências culturais, econômicas, sociais e até políticas dessa atividade. Não se pode desconsiderar as migrações de gaúchos (povos que tem essa cultura enraizada histórica e sociologicamente).

Soma-se ainda que nossa região (sudeste paranaense, por exemplo), tem forte presença de CTGs, e se eles encontraram terreno fértil para se manterem, é porque representam um modo de vida compatível com os valores locais. Além disso, bailes gaúchos ocorrem todos os finais de semana, além de praticamente todas as rádios terem programas voltados para esta audiência.

E por fim, tem-se ainda todas as demais formas de contato entre os povos historicamente existentes que favorecem o intercâmbio cultural. Os próprios CTGs são entidades que favorecem a disseminação da cultura gaúcha.

EM BUSCA DE UMA CONCLUSÃO

E aqui está uma questão determinante: a liberdade (especialmente a liberdade consciente), de qualquer indivíduo assumir determinados valores e práticas culturais. De apreciar aspectos culturais ou do cotidiano de certos povos. De entendermos a cultura como algo que é dialeticamente construído, mutável, contudo, sem perder os valores que a caracterizam e lhes dão sentido. É entender que cultura e modo de vida se inter-relacionam.

Entender ainda que hoje, a cultura não se mantém ou se desenvolve somente de forma espontânea, mas muitas vezes tem movimentos dotados de intencionalidades, muitas vezes econômico-comerciais ou ideológicas. Outras vezes se desenvolve em espaços propícios para suas práticas, alguns institucionalizados. Os CTGs são um exemplo.

O iratiense professor José Maria Orreda (1992) traz um excerto com a importância dos CTGs para a cultura. "O Movimento Tradicionalista Gaúcho estimula a valorização da história e da cultura, não só do Rio Grande do Sul, mas no Brasil e em todos os estados onde atuam os CTGs (Centros de Tradições Gaúchas). Não só estimula, mas promove sim, a história da conquista da terra, das tradições, das festas, das canções, da literatura, do folclore, da etnografia, hábitos e costumes através do congraçamento e alegria de viver em fraternidade. As meninas aprendem a bordar, cozinhar, estudar, ler, cuidar da casa, cantar, dançar, recitar. Os meninos, postura física, coragem, laçar, igualmente estudar, ler, ser cavalheiro, depois cavaleiro, ambos o respeito pelo outro, pelo próximo, pela natureza, pelos mais velhos, conquistam civismo e cidadania.”

Outras vezes, leis definem os aspectos das práticas culturais, como a Lei 10.519, de 17 de julho de 2002, que define as regras de defesa animal na realização dos rodeios.

Outro exemplo são as datas comemorativas, como a Semana Farroupilha (Lei nº 8.715, de 11 de outubro de 1988).

Portanto, não precisa ser nascido no Rio Grande do Sul para saborear um churrasco ou uma costela ao fogo de chão, dançar uma vaneira, para apreciar o chimarrão, para laçar sobre o lombo de um cavalo crioulo, para exercitar como hobby as atividades que outrora eram o ofício dos peões das estâncias, mesmo porque, algumas destas atividades também são comuns a brasileiros de outras regiões, e em contraponto, algumas não fazem parte da vida de muitos sul riograndenses, especialmente residentes na área urbana.

Da mesma forma que muitos paranaenses torcem para times de São Paulo ou do Rio de Janeiro, que o Funk (carioca (?)) se espalha por todo o Brasil, que o Carnaval é tido como identidade nacional, da mesma forma que músicas, práticas culturais, alimentares, hábitos de vida de outros países adentram nossas fronteiras, é natural que a tradição gaúcha (no sentido lato do termo) se espalhe para outros estados, especialmente para aqueles que historicamente guardam traços em comum.

MAS APRECIAR AS TRADIÇÕES GAÚCHAS ME FAZ GAÚCHO ?

Creio que a discussão seria eterna. Retomando o que diz Nilo Bairros de Brum (1968), estamos na verdade discutindo sobre as circunstâncias de aplicação de uma palavra. E recairíamos novamente no início do texto. O que é ser gaúcho hoje ? Todo Sul-rio-grandense é gaúcho ? Talvez a pergunta mais essencial seja: Por que cultuar tal tradição ?

Assim, prefiro dizer que os paranaenses que cultivam a tradição campeira, do Tropeirismo, do Sul do Brasil (e até mesmo os que não cultivam essas tradições), guardam raízes em comum.

Raízes que estão plantadas em outros países da América do Sul (Argentina, Uruguai, Paraguai) e até fora dela (Espanha e Portugal, por exemplo), bem como dos habitantes primitivos destas terras, como os diferentes grupos e etnias indígenas, os quais também não viviam isolados culturalmente. E raízes dos povos negros, que nesta temática, muitas vezes ficam em segundo em plano.

O que fica óbvio é que a cultura não conhece fronteiras políticas, especialmente quando ela se forma em um período histórico anterior a delimitação destas fronteiras.

Até mesmo os mapas da Divisão Política do Brasil demonstram que ao longo do tempo as fronteiras dos estados mudaram segundo as necessidades ou arbitrariedades políticas, econômicas, etc. Como então isolar a cultura dentro de uma linha arbitrária?


Figura 05 - Divisão Política do Brasil em 1709
Fonte: Wikipedia

Prefiro dizer que mais importante do que discorrer se o designativo gaúcho atualmente é um adjetivo pátrio (aplicado a quem nasce no estado do RS) ou é um termo para designar quem tem raízes histórico-culturais em determinado modo de vida, ou se ainda, designa aqueles que realizam determinadas práticas desta cultura ou a apreciam, é conhecer as origens e o sentido das tradições que preservamos e adotamos.

Conhecer a origem do seu povo, a história de sua terra, para assim entender as lutas, as dificuldades e as conquistas e cada vez mais amar seu lugar, seu espaço vivido, sua terra. Enfim, para termos uma identidade cultural autêntica e com real significado.

Talvez o que diferencie o nascido no Rio Grande do Sul do nascido no Paraná, seja o fato de que aquele aprecia valorizar seu passado histórico, as lutas que forjaram seu povo, valorizando sua história, sua cultura, seu povo e sua terra. O Paranaense, por outro lado, apesar de ter um passado glorioso, marcado por resistências e por lutas, pela riqueza cultural decorrente do intercâmbio frutífero com inúmeros povos ou grupos, não aparenta ter o mesmo ânimo de exaltar o seu chão, de demonstrar sua cultura, na arte, nas narrativas, no dia a dia.

Nos contentamos em dizer que a cultura gaúcha encontrou terreno fértil no Paraná porque não temos uma identidade própria, quando na verdade, temos elementos para construir uma identidade riquíssima e vasta, com valores próprios e com perspectivas particulares dos elementos que compartilhamos com outras culturas.

Sim, é fato que paranaenses e gaúchos guardam um passado em comum significativo. E mesmo que não tivessem nenhuma relação histórica e cultural entre seus povos, mesmo que as migrações não exercessem transferência cultural, que as trocas econômicas e comerciais e toda circulação humana não mesclasse culturas, valores e conhecimentos, mesmo que as culturas não fossem dinâmicas e que sim, permanecessem inertes em um território arbitrariamente definido, ainda assim seríamos todos brasileiros e guardaríamos uma origem em comum.

E se isso não bastasse, temos ainda a liberdade para apreciar os valores que se enquadram em nosso modo de vida, para escolher nossa forma de viver, para sair dos modismos culturais importados, ou comercialmente criados e aprender sobre aquilo que formou nosso povo.

A história está muito além das frases decoradas de independência ou morte grifadas nos livros didáticos. Temos que compreender que a verdadeira independência foi forjada dia a dia na luta das pessoas simples e anônimas que povoaram esse chão.

Precisamos entender que somos brasileiros, um povo uno, sem divisões internas, sem revanchismos, apesar de termos em cada canto do país uma cultura riquíssima, bela e complexa, que merece todo o esforço para ser preservada e que se completa sinergicamente.

Finalizo esta reflexão com um fragmento do livro "Povo Brasileiro" de Darci Ribeiro:

 “por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do Litoral, caipiras do Sudeste e Centro do país, gaúchos das Campanhas Sulinas, além de ítalo‐brasileiros, teuto‐brasileiros, nipo‐brasileiros, etc. Todos eles muito mais marcados pelo que têm em comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma ou outra parcela da população. A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças.”

Enfim, somos antes de tudo brasileiros. E temos nossa própria identidade, com pequenas diferenças conforme a escala observacional, seja como moradores da região Sul, seja como paranaenses, seja como iratienses, reboucenses, ponta-grossenses, urbanos, periféricos ou rurais.

4 comentários:

  1. Muito Bela a explanação.. ao autor , meus parabéns ,caso queira entrar em contato conosco , para divulgação de textos é só procurar no facebook por Jhony Hemidf ou pelo email jhonremidf@hotmai.com , temos uma pagina com mais de 7000 likes onde abordamos assuntos ligados ao Pr e ao Sul do Brasil e teremos prazer em publicar seus conhecimentos ..

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  2. Maravilha,mas é só o pessoal mesmo do Sul do PR,que entende,mas o norte tem forte influência do MS,que com a americanização tomou conta de td,piá,guri,chimarrão que nós tomamos,vem do índio,tche,são palavras de muitas tribos guarani,que habitam o sul,e muitas delas fazem parte do nosso vocabulário...

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  3. Fico feliz e grato pela visita e comentários. O blog está aberto à participação e colaboração de vocês novamente !
    E de fato, a gente percebe a expressão cultural gaúcha, sem a influência do "cowboy" ou country com maior nitidez no sul, onde ainda prevalece os rodeios crioulos e os bailes gaúchos.
    Mas sobre os bailes, gostaria de compartilhar uma opinião: percebo hoje que muitos conjuntos adotaram um estilo mais pop, mais maxixeiro, inclusive abrindo mão da indumentária tradicional. Eu gosto da verdadeira música gaúcha, e admiro muito conjuntos como os Serranos, Monarcas, grupo Rodeio, entre outros, que apesar do modernismo, permanecem gaúchos.

    Como diriam os Mirins:

    "Tem tanta gente enganando nossa gente
    Se infiltrando pelos nossos festivais
    Na alegação de um falso modernismo,
    E com o apioio de pseudo-intelectuais

    Eu quero ouvir som campeiro
    Que seja fácil e gostoso de escutar
    Eu quero ouvir um som campeiro
    Desses que basta estar feliz para cantar..."

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  4. Haroldo , caso tenha alguma pagina no facebook ou outros postagem sobre qualquer tema e queira compartilhar conosco , entre em contato em nossa pagina > https://www.facebook.com/pages/Vip-Vim-do-Interior-do-Paran%C3%A1/346898755391134

    Parabéns novamente pelo post abordando essa tão rica historia.

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