Função da escola diante do ensino obrigatório aos 4 anos e da educação integral

Autores de diversos artigos científicos, educadores, a LDB (Lei 9.394/96) e mesmo a população apresentam sua visão sobre a função da escola, muitas vezes gerando polêmica, especialmente no que se refere à compreensão social de sua função, pois a maioria (talvez pela influência exercida pela academia com significante tendência marxista no Brasil, pelo caráter social de muitas políticas públicas, e mesmo, pelos discursos políticos, etc.) aponta a escola como agente responsável pela justiça social.


Não é descartado a visão mais pragmática, que vê como função da escola a transmissão dos conhecimentos científicos e a preparação do indivíduo para o mercado de trabalho, e como consta na própria LDB, de transmitir os conhecimentos socialmente valorizados (o que em um contexto capitalista não pode desconsiderar completamente da qualificação profissional), além de dar as condições para o exercício da cidadania. Mas condições subjetivas não garantem a efetividade do exercício da cidadania.

 A Lei 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, define em seu artigo 2º que “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

É preciso refletir que “preparo” para o exercício da cidadania não significa necessariamente a garantia do exercício da cidadania. Há muitas variáveis envolvidas que ultrapassam os limites de atuação da escola. Afinal, a educação é um processo contínuo e amplo. Ela se estabelece também no convívio familiar, se funde aos valores da comunidade, da cultura que compartilha e dos valores da sociedade. Sofre influências históricas, econômicas, étnicas, culturais, políticas, etc.

Tornando a questão ainda mais complexa, além da escola ter de contemplar todas essas variáveis já elencadas, ela precisa ainda considerar que cada indivíduo é único. Tem sua visão particular de mundo, suas especificidades psicológicas, sua autonomia quanto ao que deseja da vida e como pretender alcançar seus objetivos (liberdade que deve ser considerada), e a escola precisa respeitar essas diferenças.

Ressalta-se ainda que a escola (e quando utilizo o termo "escola", resumo em um ente abstrato a visão que se tem da totalidade escolar do Brasil, sem se referir especificamente a nenhuma, para conseguir, mesmo que de forma superficial, chamar a atenção para a diversidade de condições que as diversas regiões e lugares específicos destas regiões apresentam) tem a missão formal de repassar conteúdos (embora pesem algumas críticas sobre isto também). Conteúdos que, apesar dos discursos que dizem priorizar a qualidade, são avaliados quantitativamente, através de provas e avaliações, formuladas por órgãos externos (e que acabam influenciando nos conteúdos).

    Como exemplo de avaliações externas está a Prova e a Provinha Brasil, cujas diversas distorções que podem ocorrer no processo (e não cabe aqui mencioná-las) muitas vezes não permitem aferir a real situação do ensino, mas cujos resultados passam a compor indicadores como o IDEB, o qual serve de instrumento para influenciar a opinião pública sobre a qualidade do ensino. Além disso, é um índice que gera comparações e competitividade entre as escolas, municípios e estados.

       Ou seja, apesar dos discursos de que a escola precisa considerar as diversas diferenças contextuais dos seus alunos, tais indicadores não consideram as diferenças entre as escolas, mas resume, em um único número, toda a complexidade do contexto em que a escola opera, dos agentes que com ela interagem e dos resultados que ela proporciona.
Em outras palavras, a escola está oprimida, respondendo a diferentes pressões, entre elas:


* Repassar com qualidade os conteúdos científicos, definidos a partir de um recorte socialmente ou politicamente determinado e intencional da realidade e que representa uma visão daquilo que se julga importante o aluno conhecer e aprender;

* Obter índices quantitativos favoráveis que expressem a qualidade do ensino, muitas vezes para atender às necessidades (às vezes, políticas) de informar e formar a opinião pública sobre a qualidade do ensino, embora algumas variáveis só possam ser percebidas através de uma análise qualitativa e específica; (Leia neste blog a postagem “O IDEB a concepção desvirtuada de qualidade da educação, clicando aqui )

* Atender as exigências do contexto em que as escolas e toda a sociedade estão inseridos, qualificando pessoas para o mercado de trabalho, onde surge também a oportunidade de aplicar pragmaticamente os conhecimentos socialmente construídos, o que é um fator de desenvolvimento social e pessoal.

* Preparar para o exercício da cidadania, dentro de um contexto político, cultural e social heterogêneo, de forma crítica e autônoma, mesmo sendo a escolha dos conteúdos, em si mesma, um reflexo ideológico e político; e

* Promover a justiça social. Como cita Dalila Oliveira, “as políticas educativas na atualidade partem da noção de que a escola é um espaço de ensino, mas antes de tudo de promoção de justiça social”. O que é natural, na medida em que a escola garante o cumprimento de sua missão, ou seja, proporcionar ensino de qualidade, ela está dando aos indivíduos condições que favorecem a igualdade social.

Mesmo não entrando em questões filosóficas sobre qual é o conceito de justiça e se há possibilidade de determinar uma justiça universal e absoluta, que se aplique a todos os fatos e casos, há de se refletir, pelo menos, sob qual e sob a perspectiva de quem se define o que é justiça. É dar condições iguais a todos, mesmo todos sendo diferentes ? É considerar as diferenças ? Mas com que peso ? Com que parâmetros ?

Surge a primeira dúvida: a partir do momento que as escolas repassam os conteúdos e os conhecimentos valorizados socialmente, dá as condições para o indivíduo entender a sociedade e suas relações, o prepara para o exercício da cidadania e o prepara para cumprir a função social do trabalho, ela já não está sendo um agente de promoção da justiça social ? Onde fica o papel dos outros agentes, da família e do próprio indivíduo ?

 E a segunda dúvida: A Constituição Federal de 1988 expressa em seu artigo. 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Ou seja, a educação não está circunscrita aos muros da escola. É um processo constante na vida do cidadão, que continua mesmo após ter cumprido a escolaridade formal. Que se prolonga na Igreja, no clube, nas empresas, em outros órgãos e políticas estatais e especialmente na Família. .


A própria LDB já citada anteriormente também destaca: A educação, dever da família e do Estado. Ou seja, se está definido que a educação não é exclusividade da escola, onde fica o papel dos outros agentes na promoção da justiça social ? (depois de definir o que é justiça social)

 Neste contexto, surge outra questão relevante. A LDB expressa com clareza:
Art. 29.  A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.

Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

Como a Escola irá complementar a ação da família, como irá fortalecer os vínculos familiares, se cada vez mais as políticas públicas, na tentativa de fomentar a promoção social, tem, ao contrário, gerado dependência do indivíduo com relação à ação Estatal ? Pesa ainda o contexto capitalista que faz com que muitos pais e mães trabalhem durante todo o dia e utilizem a noite para repor as energias para o próximo dia de trabalho e para as obrigações do lar, sobrando pouco tempo para as relações familiares.

Como a família irá contribuir com a formação do indivíduo se o Estado tem priorizado políticas (paternalistas, criticam alguns) que basicamente criam os indivíduos, assumindo o papel familiar ?


E aqui surge a maior contradição destas políticas: O Estado tem se mostrado incapaz de atender as necessidades básicas da sociedade. Em termos de educação faltam vagas em creches para a atual demanda. Em instituições escolares de ensino obrigatório faltam recursos, estrutura física precária, professores mal remunerados, enfim, faltam condições para prover um ensino de qualidade para a atual demanda. E mesmo assim, editam leis na esperança de que seus pressupostos se cumpram milagrosamente, como se as condições para executá-las surgissem de forma tão fácil quanto foi colocá-las no papel.

Entre estas políticas, podemos citar duas que estão no centro das discussões atuais: o ensino integral e a obrigatoriedade da matrícula aos 4 anos de idade.

No ensino integral a criança fica restrita aos muros escolares durante 8 horas de seu dia, recebendo alimentação, ensino formal e atividades paralelas, enquanto os pais trabalham (ou não). Obviamente, há casos e casos, mas para alguns, o espaço escolar será o propulsor de melhores condições de vida, mas não deixará de depender de outras instâncias, de outras políticas que promovam condições de igualdade para o indivíduo se valer das oportunidades.

Ou seja, a escola não pode assumir a responsabilidade total pelos resultados. Cabe também aos demais agentes (incluindo a sociedade, que também é dependente de questões macroestruturais) e ao próprio indivíduo, que cada vez mais é colocado como vítima ou dependente.

Entretanto, no ensino integral, a família ainda tem a autonomia de decidir se opta ou não pelo apoio estatal além do horário regular de aula no desenvolvimento do filho. Ou seja, trata-se de um direito, de uma facilidade e não de uma obrigação imposta por um agente político e ideológico.

Porém, quanto à obrigatoriedade da matrícula para crianças a partir dos 4 anos, com a vigência da Lei 12.796, de 04 de abril de 2013, a família perde mais essa opção. Mesmo aqueles que não aprovam a institucionalização de seus filhos nesta idade, terão a obrigação de cumprir a Lei. Terão que deixar seus filhos de 4 anos nas mãos da escola, independente das condições das instituições brasileiras.


Obviamente, para algumas famílias, será uma solução. Uma forma de deixar os filhos seguros enquanto realiza outras atividades. Entretanto, para outros, um estímulo à dependência. Uma forma de dizer que o Estado (e aqui está o problema) representado pela figura da escola, é o responsável pelo desenvolvimento desse indivíduo, pelo seu sucesso profissional, pelas escolhas que ele fará, pelas condições de igualdade que a sociedade deve lhe dar (notem a dependência, a passividade), pela sua conduta como cidadão. Uma tarefa, utópica.

Some-se a esse contexto uma série de outras políticas públicas paternalistas, que tem se mostrado ineficientes em retirar o cidadão da condição de desigualdade social (tanto que os beneficiários dos programas do Governo só aumentam), uma realidade onde muitas escolas não têm estrutura ou recursos para dar um ensino de qualidade, além de uma pressão para atender exigências quantitativas, temos o resultado de um ensino precário, com escolas atendendo funções (assistencialistas) que não são o foco de sua atuação. Temos professores e gestores preocupados com problemas pessoais dos alunos e temos, ao invés da justiça social, a perpetuação da dependência do indivíduo da ajuda do Estado. 
     
Obviamente, esse contexto é favorável para alguém...

Como esse tipo de pensamento social, cada vez mais seremos ingeridos pelo Estado. Essa é a lógica. Teremos um Estado (verdadeiro Leviatã) cada vez mais influente e forte, usando de migalhas sociais, enaltecendo no discurso os direitos da sociedade (enfaticamente pagadora de impostos), mas na prática mantendo o status quo dos mesmos (grupos) detentores do poder. Detentores que preservam sempre o mesmo interesse: o poder pelo poder. As concessões sociais são apenas a cortina de fumaça.

Mas pior que a busca questionável dos detentores do poder por vantagens pessoais ou para os grupos plutocráticos, e a busca (ou a alienação social), que em nome de vantagens pessoais (migalhas) e interesses, se deixa conduzir pelos discursos.

Essa é a verdadeira alienação que a escola e os educadores deveriam combater. Muito mais profícua que debater a anacrônica distinção entre direita e esquerda, entre políticas sociais e neoliberais, quando na verdade, todos mantém seus interesses e ideologias em primeiro plano. O social, a coletividade, é mero suporte, mera estrutura para os anseios individuais de poder. Mas cada escola é uma escola, cada região é uma região, e as condições são dinâmicas. Condições que afetam as concepções sociais e a visão que cada um tem desse contexto. A experiência mostrará o caminho mais coerente a seguir para se chegar ao ideal de sociedade que buscamos. Porém, o ideal também não é unânime. 

Leia também a Postagem: Valorização dos Secretários Escolares

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