O fim da estabilidade na ponta da caneta azul

http://www.cutbrasilia.org.br/site/2018/02/16/
a-mentira-do-combate-aos-privilegios-
na-reforma-da-previdencia/
Que as políticas neoliberais são orientadas para atender ao mercado, todos nós sabemos. Que o tal mercado nada mais é que uma abstração que personifica os donos do capital, também. E quando falamos em donos do capital, estão incluídos os mais diferentes agentes com poder político-econômico, como grandes empresários, inclusive sonegadores, especuladores, ruralistas e tantos outros, cujos tentáculos se enraízam na política.

Esta relação com a política é que lhes permite fazer com que o Estado seja uma entidade a serviço de seus interesses. Para os neoliberais, Estado ruim é aquele que atende ao social. Estado mínimo e necessário, é aquele que lhes garante o lucro sob a alegação de que isso gera eficiência, renda e trabalho .

O Estado é
manipulado e está infestado de agentes políticos, que por sua vez, servem aos agentes capitalistas (que se dizem contrários ao Estado, mas dependem e mamam nele), quando não se confundem literalmente com estes.Todo resto não passa de retórica para convencer ao povo, para aliená-lo e para fazer com que ele pague pelos privilégios de poucos. Usam o Estado e manipulam a opinião pública conforme seus interesses.

Quando se diz, por exemplo, que a sociedade paga muitos tributos, cria-se uma imagem mental de que o pobre trabalhador é sugado. Esquecem que é do dinheiro dos impostos que vêm a saúde, a educação pública e tantas outras políticas sociais. Porém, é dos mesmos impostos que saem os privilégios dos políticos com altos salários e penduricalhos, a infraestrutura que garante lucro a empresários, os quais obtém, inclusive, isenção de impostos, financiamentos subsidiados, etc. É da educação pública que sai o exército volumoso de mão de obra qualificada, barata e agora descartável, que gera lucro ao setor produtivo até a morte (não mais até a aposentadoria). E o lamentável é que basta o cidadão comparar os dados da sonegação empresarial para ver que ela é maior que o orçamento da saúde e educação somados.

https://blogdovalentin.com.br/index.php/tag/estado-minimo/
Porém, valendo-se deste discurso de muitos impostos, alivia-se a carga dos grandes devedores, mantém-se a cobrança sobre os mais pobres, cuja renda é totalmente dedicada ao consumo de itens básicos. Com a alegação de reduzir gastos públicos, de desinchar o Estado, e assim ser possível reduzir impostos, cortam-se justamente direitos sociais que atendem às necessidades mais básicas da classe mais necessitada. Qualquer pessoa que tenha o trabalho de analisar o orçamento público, especialmente o Federal, verá que não está na saúde e na educação o maior percentual de gastos.

Vivemos uma política de discursos onde o povo aceita ser enganado. Enquanto isto, ao invés de usufruirmos do tempo analisando esta realidade perversa e discutindo sobre ela (para saibamos impor pautas verdadeiramente coletivas aos nossos representantes), preferimos reproduzir memes e cantar músicas de frases únicas (agora é a caneta azul)  em um exercício mental de acriticidade e de banalização dos problemas sociais e de suas consequências. Talvez por isso sempre fomos o país do Futebol, do Carnaval, e nunca da Educação...

A história da caneta azul revela algo bem mais profundo que a criatividade de um cidadão, que foi impulsionada e propagada pelo poder de influência de celebridades, como cantores de arrocha e jogadores de futebol e da comunicação via redes sociais. Mostra que o brasileiro não se interessa em se aprofundar em uma análise sobre a realidade, prefere pontos de vista prontos, superficiais, fáceis de serem repetidos e compartilhados.

Só o fato destas celebridades compartilharem tal tipo de conteúdo ao invés de indicarem um livro, um texto elaborado, uma outra forma de cultura com maior conteúdo analítico, demonstra que eles entendem, de fato, o que agrada ao povo. Afinal, eles também agradam a tantos. E neste rol podemos encaixar os políticos.

Sabedoria semelhante sobre o gosto popular deve orientar nossa classe política. Eles sabem que a sociedade prefere o discurso fácil e pronto, as frases de efeito, lotadas de ideologias e de pressupostos inválidos, que adoram a rivalidade e o antagonismo típico das torcidas de futebol. 

Ver a política com emoção ao invés de analisá-la com a razão deve ser mais condizente com a cultura do país do futebol e do carnaval do que analisar profundamente a realidade, buscando dados fidedignos sobre a realidade assombrosa que se desenvolve. É mais fácil defender apaixonadamente um lado do que ver pontos positivos e negativos, coerências e incoerências e entender que a política é um meio, é um exercício social de busca contínua pelo bem da coletividade, que deve representar com harmonia, bom senso os anseios de segmentos contraditórios, complexos, sem, no entanto, promover exclusões.

Uma análise mais realista da realidade política evitaria que um presidente fosse eleito como o voto de muitos trabalhadores apostando em pautas que esfolam aos próprios trabalhadores em nome do lucro de capitalistas (mercado). Evitaria que em um país, onde a maioria da população é pobre, fossem eleitos políticos contrários às políticas sociais, sendo que alguns deles veem esta atuação estatal até mesmo de forma pejorativa, em nome de uma falsa meritocracia que atribuiu a pobreza à preguiça e não a um contexto de exploração e de oportunidades desiguais. Que desconsidera o jogo de poder e as relações sociais que reproduzem a desigualdade.

Trabalhadores que sempre foram o elo mais frágil e desprotegido das relações trabalhistas, que até então colhiam os frutos de lutas históricas em prol de conquistas mínimas, aplaudiram o abafamento da atuação sindical, com generalizações e pressupostos ideológicos como justificativa, esquecendo que  os sindicatos eram um dos poucos mecanismos de defesa e de união para o reequilíbrio de forças. Enfim, trabalhadores perderam sua representatividade, sua consciência de classe.

Os mesmos trabalhadores observaram estagnados a Justiça do Trabalho  e as normas de segurança serem relativizadas. Apoiaram a Reforma Trabalhista, esquecendo a que classe pertencem.  Concordaram em ter jornadas flexíveis, mesmo tendo que se submeterem a jornadas de trabalho típicas da era da Revolução Industrial do Século XVIII ou se tornarem MEIs (microempreendedores individuais, achando que um CNPJ os tiraria do pertencimento da classe trabalhadora e os integraria à classe dos capitalistas – ledo engano, muitos agora apenas fazem “bicos regulamentados”.

Se não bastasse este contexto, ainda aceitaram confortavelmente uma Reforma Previdenciária, com dados até hoje questionáveis, que eleva para 40 anos o tempo de contribuição em um país onde há forte desemprego, grande informalidade, onde a rotatividade é grande e quando se é demitido e precisa enfrentar uma maratona, às vezes de meses ou anos em busca de uma nova oportunidade, com condições agora piores. Como completar 40 anos de contribuição neste contexto ? E se completar, com que saúde ? Isso sem mencionar que vivemos em um contexto onde o trabalhador de mais idade é simplesmente descartado do mercado.

Agora que os trabalhadores privados perderam conquistas históricas, o ataque é contra os trabalhadores públicos. Primeiramente, a estratégia é caracterizá-los todos como privilegiados, é transformá-los em culpados, em inimigos da sociedade perante a opinião pública. 

Esquecem os mais de 70 mil políticos eleitos (onde geralmente cada um indica dezenas ou centenas de comissionados, assessores, escolhe terceirados, contrata fantasmas, pratica rachadinhas, etc.) e dizem que há um número excessivo de servidores (será que temos professores, monitores de creches, profissionais da saúde, atendentes, técnicos, fiscais, etc. suficientes ?). Caracterizam todos como displicentes, enfim, constroem uma imagem negativa de toda uma categoria com memes, chavões, frases soltas, de maneira rasa e superficial (como a sociedade gosta de ser informada), afirmando que cortar direitos (como se fossem privilégios) irá melhorar o serviço público.

Geralmente, em termos de remunerações elevadas, sabemos que altos funcionários, em funções políticas, fazem a fama negativa de uma maioria que trabalha com salários dentro da média de mercado, às vezes menos que o necessário para a subsistência. Pegam o grosso da lei, como é o caso da estabilidade, e fazem de conta que isto é um privilégio absoluto. A mídia contribui com a desinformação omitindo ao povo que existem diversas hipóteses legais que atualmente já permitem a demissão ou exoneração. E o povo, que pega jornal para ler somente manchetes, se deixa manipular e acredita que com dadas mudanças o setor público terá mais eficiência, será mais econômico, todos terão acesso à saúde e à educação típica dos discursos políticos e dos países de primeiro mundo.

http://nitroglicerinapolitica.blogspot.com/2017/12/privilegios-de-quem.html
O erro crasso começa em achar que os problemas estão no funcionalismo, meros trabalhadores que cumprem ordens e emanações legais (com os recursos materiais nem sempre disponíveis), especialmente naqueles da linha de frente, esquecendo que a eficiência, o planejamento, o fornecimento de recursos e de condições de trabalho, bem como as cobranças devem iniciar nas chefias, geralmente compostas por indicados políticos. Esquecem que para haver um bom atendimento, é necessário recursos e estrutura e boas condições de trabalho. Basta analisar que as escolas, para oferecerem um ensino de melhor qualidade ao cidadão, realizam festas, bingos e outras atividades para arrecadar recursos em um esforço extra de dedicação gratuita dos servidores da educação.

https://blogchiquinhopolitizador.wordpress.com/
Nossa sociedade é contraditória. Esquecem que o servidor cumpre a lei, elaborada pelos políticos eleitos pela própria sociedade, segundo o interesse dos grupos de poder. Ao mesmo tempo que criticam o excesso de comissionados em funções pouco produtivas, com salários elevados, acham necessário implantar uma forma de contratação praticamente semelhante àquela que emprega apadrinhados políticos para todos os funcionários, ou seja, subordinada aos interesses do político do momento.

Será que este ataque aos servidores, em nome de uma falsa busca pela eficiência e economia (o bom senso já revela que ocorrerá o oposto) de certa forma, não revela a falta de análise crítica da sociedade para os reais problemas sociais ? 

Será que este ataque aos servidores não é uma forma do próprio governo criar culpados, inimigos para justificar suas políticas, que no final, prejudicarão ao povo e facilitarão a inserção de privilegiados e apadrinhados onerando o Estado ? Será que está busca pela economia e eficiência não gerará ainda mais gastos e menor eficiência ? Não bastaria apenas melhorar os critérios de avaliação de desempenho, dar opções de avanço na carreira por mérito e colocar chefias técnicas e habilitadas e não meramente de vocação política ? 


O discurso de Paulo Guedes, de que a classe dos servidores é detestada pela população, além de contribuir para criar uma imagem negativa de uma vasta classe, generalizando-a, além de fazer parte de uma estratégia de desmonte do Estado-social, é violenta. Incentiva agressões e insultos contra professores, médicos, agentes de fiscalização, que por força de cumprir a lei, ou pela falta de recursos e estrutura, contrariam as expectativas do cidadão. Quando um agente de trânsito multa um cidadão, ele está cumprindo a lei. Quando há fila na saúde, é porque faltam leitos, médicos, remédios, estrutura, não porque o atendente optou por isso. Mas ele está sendo tratado como culpado, enquanto chefias e toda classe política fica protegida em seus gabinetes, usufruindo dos verdadeiros privilégios.


http://endireitandofacil.blogspot.com/2015/03/
funcao-de-confianca-x-cargo-em-comissao.html
Sabemos que no Brasil, excetuando o judiciário e altos cargos federais (geralmente políticos) que são a exceção em termos de maiores salários, a maioria dos servidores empregados (no poder executivo da esfera municipal) tem vencimentos compatíveis com os de mercado e trabalha em condições longe das ideais. Facilitar a substituição de servidores concursados por contratos terceirizados ou dar a possibilidade de contratações por pura conveniência política é abrir as portas da administração pública para acordos, rachadinhas, fantasmas e tantas outras formas de maracutaias que vemos nos jornais brasileiros. É pagar mais para que o mesmo ou pior trabalho seja feito. É destruir a continuidade, o planejamento, desconsiderar a curva de aprendizagem. Enfim, perda de eficiência, de qualidade, maiores custos e maior possibilidade de uso nada objetivo do Estado. Enquanto o real problema, cuja causa é estrutural e até mesmo cultural, permanece intocável.

Pesa ainda o fato de que a sociedade é marcada por uma meritocracia ilusória, cuja justiça e igualdade reside somente nos discursos. Na prática, ataca-se aqueles que se empenharam em estudar e enfrentar uma concorrência aberta a qualquer um, para conseguir o seu trabalho digno, independente de lado político, de amizades, de troca de favores, da malandragem e do jeitinho brasileiro, tão comum e até mesmo valorizado em nossa sociedade.

O concurso público é a forma mais democrática e justa de acesso ao trabalho. Todos podem concorrer em igualdade de condições. Estabilidade não é direito, é dever do Estado para garantir à sociedade que aqueles que executam o trabalho não estão usufruindo do cargo por conveniências políticas, mas sim por mérito, comprovado através de processo seletivo e reconfirmado através de avaliações de desempenho. Sem mencionar as diversas formas de demissão e exoneração a dispor do gestor em casos que assim a lei justifique. Frise-se, nos casos da lei, não nos casos de conveniência e apadrinhamento político.

Queremos educação de qualidade, mas não valorizamos aos professores. Queremos saúde, mas tratamos os profissionais que nos atendem como privilegiados, sem analisar as condições de exercício da profissão. Por outro lado, criticamos a classe política pelos privilégios, pela malandragem, pela corrupção, mas achamos justas suas propostas que facilitam estas práticas.

Nossa sociedade está alienada, indisposta a refletir, ou realmente, vivemos em um mundo que valoriza a malandragem e a esperteza em detrimento do trabalho, do mérito e da lei. Até mesmo as autoridades educacionais expressam publicamente, como o Ministro da Educação atual, de que é mais relevante formar mão de obra do que cidadãos críticos. Neste contexto vemos que tudo se encaixa, que todas as medidas, que todas as situações são peças de um quebra-cabeça maior, e a sociedade está demorando em ver a paisagem toda. E quando ver, seus direitos já estarão aniquilados.

O que podemos concluir é que tais medidas não irão resolver o problema da máquina pública. Basta uma análise racional e objetiva para a população entender onde está a raiz do problema. Mas na política, às vezes, em nome do poder e dos ganhos, é preciso inventar inimigos. O lamentável é a sociedade não perceber estas estratégias que a prejudicam. Pior, apoiá-las.
http://www.tribunadainternet.com.br/num-pais-como-o-
brasil-pretender-o-estado-minimo-e-uma-falacia/


E dos tantos livros, artigos, das tantas músicas de caráter erudito ou que levam a uma reflexão que poderiam ser indicadas pelos tantos pensadores, filósofos, cientistas, professores, é a caneta azul que é indicada como sucesso pelas pessoas que escolhemos como celebridades. 

Talvez o hit caneta azul exemplifique muito da conduta política ou pelo menos, de como a sociedade enxerga a atuação política (Sugiro a leitura da matéria "como a música 'caneta azul' rompeu a bolha para mostrar o Brasil real, publicada na Gazeta do Povo"). 

E foi uma caneta, que outrora assinou leis em favor da sociedade, que aboliu a escravidão, que hoje retira direitos de quem deveria ser protegido e concede privilégios a poucos.  O aumento da desigualdade social está aí para confirmar.


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