A assertiva “o Brasil é um país religioso” pode ser comprovada tanto estatisticamente, através dos dados demonstrados pelos Censos do IBGE, quanto pela riqueza cultural derivada da religiosidade, tanto institucional quanto popular.
Destaca-se que a religiosidade popular não se dá de forma linear aos dogmas institucionais, nem é um subconjunto da religião institucionalizada.
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| Fonte: https://osdivergentes.com.br/ |
A religiosidade popular é complexa. Ela se mostra como espaço de resistência (Candomblé). Por vezes, é dependente ou derivada da religiosidade oficial; às vezes, autônoma; e, em certos casos, produto de amálgama cultural (Umbanda). Mescla-se com crenças e culturas locais, com interpretações diversas sobre os fenômenos sociais e naturais (xamanismo, nandarecó), com o contato com povos de outras religiosidades, inclusive globais (budismo, islamismo, etc.), em um sincretismo culturalmente enriquecedor. Às vezes, é apenas uma maneira peculiar de praticar a religiosidade no vácuo deixado pela institucionalização da fé (benzedeiras).
Já a religião institucional, de certa forma, é imposta, embora hoje essa assertiva possa ter perdido a força. Ela tem dogmas criados em contextos específicos, regras, liturgias e significações previamente determinadas que precisam ser seguidas. Mais molda do que se adapta aos sistemas sociais onde se instala. Tem uma visão de mundo própria (mas não isenta), embora estejam incluídos em seu arcabouço valores éticos universais.
Para destacar o poder e a influência da religião institucionalizada, mais precisamente do catolicismo, basta considerarmos que, com a
chegada do colonizador, uma das primeiras ações foi cravar cruzes no solo e rezar missas. Esse ato tem simbolismo histórico importante: significa que as expedições, como a de Pedro Álvares Cabral, eram acompanhadas de religiosos, garantindo a presença da Igreja Católica nas novas terras e sua participação nas conquistas, em uma atuação conjunta do Estado, da Igreja e dos interesses comerciais.Enfim, a Igreja teve papel significativo em todo o processo de colonização e sua influência perdura até hoje, embora o catolicismo venha perdendo espaço para as igrejas evangélicas, sobretudo neopentecostais.
Para o site da Arquidiocese de São Sebastião – RJ, “a primeira missa celebrada no Brasil, em 26 de abril de 1500, no atual município de Santa Cruz Cabrália, na Bahia, é amplamente reconhecida como marco fundacional da história nacional. Presidida pelo frei Henrique de Coimbra, essa celebração foi mais do que a consagração de uma nova terra ao cristianismo: foi um encontro profundo e transformador entre culturas, crenças e cosmovisões.”
Até este ponto, trata-se de um fato histórico inconteste. Realmente, tanto a celebração quanto a chegada do europeu transformaram culturas, tanto a dos povos originários quanto a deles. Porém, a cultura já estabelecida foi tratada de forma opressora e com viés de inferioridade. Essas marcas não se apagaram ao longo do tempo e não se apagarão. Os estudos do Decolonialismo e os trabalhos de Aníbal Quijano são valiosos para quem se interessar por essa temática.
Pode ser citado ainda o Padroado Régio. De acordo com Vanessa Freitag de Araújo, Mundo Educação e outras fontes, era um acordo jurídico de origem medieval que dava aos reis controle sobre a Igreja Católica em seus territórios; em troca, o rei tinha o dever de expandir o cristianismo e remunerar o clero. O Padroado vigorou no Brasil Colônia e Imperial, alinhando a religião aos interesses do Estado.
Outra forte influência religiosa que vemos em todas as cidades é a arquitetura típica das igrejas, sobretudo católicas. Toda cidade tem sua igreja, normalmente erguida nos primórdios da fundação. Depois, dá-se para citar as tradicionais festas religiosas, os monumentos turísticos (imagens e locais religiosos), os feriados (dias santos) e até o nome das cidades (São Paulo, Aparecida do Norte, etc.).
Vale lembrar que muitas das festas religiosas do catolicismo guardam elementos de outras matrizes religiosas ou da religiosidade popular, em um sincretismo interessante. Por exemplo: Lavagem do Bonfim, na Bahia; Festa de Nossa Senhora dos Navegantes (RS); etc.
Ainda conforme o texto do site da Arquidiocese de São Sebastião, “a cruz histórica transcende seu significado religioso, simbolizando amor, união e interconexão entre povos”. Neste trecho, já há margem para questionamento. A chegada do descobridor, também chamado de colonizador (mas talvez o termo correto fosse invasor), não foi pacífica. Indígenas foram massacrados, a escravidão perdurou por séculos e até mesmo a cultura dos povos originários foi marginalizada. Enfim, “catequizaram-se” os indígenas como forma de dominá-los e torná-los úteis aos anseios econômicos do europeu.
É importante fazer um adendo: o termo “catequizaram” merece aspas, pois catequizar significa ensinar os dogmas de uma religião, repassar os princípios da fé para aquele que se propõe a aprender. Mas, na realidade, de forma imposta, ocorreu muito mais que isso contra os indígenas. Foi uma conversão ou proselitismo coercitivo.
Desconsiderou-se que os povos que aqui habitavam já tinham uma religiosidade ou crença própria e condizente com seu modo de vida. Além do processo de aculturação ou de sobreposição cultural, usou-se a religião com finalidade social, política (poder) e econômica. Ou seja, como meio de dominação e manipulação conveniente aos interesses do europeu.
Merece destaque o fato histórico de que (segundo o site Histedbr, da Unicamp) a Companhia de Jesus (Jesuítas) chegou ao Brasil em 1549, liderada por Manuel da Nóbrega, para catequizar os povos nativos e fundar o primeiro colégio no país. Ou seja, culturalmente transmitiram, por meio das reduções e depois, nos colégios, os valores do cristianismo, embora fossem contra a escravização dos indígenas.
E aqui está a questão-chave a ser tratada: não apenas a influência cultural da religião, mas seu uso histórico e atual como ferramenta de poder.
Mas, independentemente da crítica sob o prisma cultural, o fato é que o brasileiro é marcado pela religiosidade, e essa característica é usada de forma estratégica como ferramenta de poder e manipulação. Púlpito religioso e palanque político se fundem. Verdadeiras empresas (igrejas que operam sob a lógica mercadológica) são criadas para esse fim. Discursos políticos são cuidadosamente estudados para se valer desses pilares.
Por outro lado, diversos estudos e artigos já vêm tratando dessa questão. Estatísticas nos dão a dimensão e a importância dessa característica. Mas ainda é um tema carregado de ideologia, paixão e tabu, o que dificulta uma interpretação mais objetiva por parte de muitos, o que, por si só, favorece a manipulação, ou ao menos, o uso enquanto plataforma política e de poder.
Mudanças quantitativas no perfil religioso brasileiro
A religiosidade do brasileiro passou e passa por mudanças ao longo da história. Segundo o Valor Econômico, em 1900 o catolicismo era a religião dominante no Brasil, embora os evangélicos já estivessem presentes. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revelam que, no primeiro censo, em 1872, o Brasil era quase inteiramente católico (99,7%), com apenas 0,3% de outras religiões.
Dados de 2022, também do IBGE, divulgados pela Agência de Notícias, mostram a consolidação das mudanças do perfil religioso do Brasil. Houve incremento de fiéis das religiões de Umbanda e Candomblé (de 0,3% em 2010 para 1,0% em 2022) e de outras religiosidades (de 2,7% para 4,0%). Houve pequeno declínio na religião espírita (de 2,2% para 1,8%). As religiosidades de tradições indígenas representaram 0,1% das declarações. Destaca-se ainda que a proporção de pessoas que se declararam sem religião teve aumento de 1,3 ponto entre 2010 e 2022, passando de 7,9% para 9,3%.
Dados do IBGE consolidados pela CNN expressam que os católicos estão em tendência de queda, enquanto os evangélicos estão com tendência de crescimento, sobretudo a partir de 1980, quando os católicos representavam 88,7% da população, caindo para 82,9% em 1991, para 74,1% no ano 2000, 65,1% em 2010 e 56,7% em 2022. Nesse mesmo período, o número de evangélicos cresceu de 6,5% para 26,9%.
O IPEA também traz dados interessantes. Em um estudo, constatou importante crescimento dos estabelecimentos religiosos no Brasil nos últimos 20 anos. Entre os 124.529 estabelecimentos existentes no país em 2021, 52% são evangélicos pentecostais ou neopentecostais, liderando o resultado, seguidos por 19% evangélicos tradicionais e 11% católicos. Os pesquisadores observam ainda uma tendência de interiorização, revelando que o crescimento das igrejas evangélicas não está limitado apenas às grandes cidades. Houve aumento notável no número de estabelecimentos em áreas rurais e municípios menores, indicando interiorização das instituições religiosas.
Este é um retrato da atualidade nesse campo, que perpassa a individualidade e a fé, mas também se relaciona com questões coletivas, como aspectos culturais, econômicos e sociais, além de marcados pela ideologia e pela política.
O fato é que, apesar das mudanças, a maioria da população brasileira é religiosa. Esse contexto representa um desafio para a esquerda brasileira.
A esquerda e a religião
A esquerda é frequentemente associada a uma postura intelectualizada e distante das práticas religiosas populares, perdendo terreno para a direita, que utiliza de forma mais estratégica e hábil a religião como mecanismo de mobilização política e se mostra como defensora dos valores religiosos, sobretudo cristãos — embora de forma contraditória. É, muitas vezes, um discurso mercadológico e ideológico, com frases de efeito que têm pouca ou nenhuma sustentação prática.
Não há fundamentos que embasem que a esquerda contrarie os princípios religiosos ou que a direita seja sua defensora, ou vice-versa. A questão é muito mais complexa do que retratam os debates rasos em redes sociais ou discursos políticos cujo interesse é “lacrar”, ou seja, popularizar uma frase facilmente memorizável e de fácil repetição como suposto resumo de toda a complexidade social de um país inteiro, com intuito nitidamente eleitoral, embora não represente a verdade.
Para sustentar esses argumentos superficiais de oposição entre esquerda e religiosidade, usa-se a percepção de que a esquerda ataca a religião e os valores judaico-cristãos ao apoiar ideias progressistas sobre questões como casamento homoafetivo, direitos LGBTQ+ e direitos das mulheres.
Porém, se, em vez de repetirmos sem questionar, formos às fontes, a própria Bíblia contém diversos trechos que se harmonizam, ou ao menos dialogam fortemente com princípios defendidos pela esquerda: justiça social, igualdade, solidariedade, crítica à concentração de riqueza e defesa dos pobres, para citar alguns exemplos.
Por outro lado, muito do que a direita defende se choca frontalmente com o cristianismo. Mateus (6:24) condena a idolatria do dinheiro. A direita econômica, porém, costuma tratar o mercado como deus simbólico e orientador de todas as ações. Vê ainda o sucesso material como sinal de benção e enaltece a meritocracia, atribuindo o fracasso pessoal à indolência do indivíduo ou resultado de castigo ou vontade divina. Assim, tende a associar pobreza a falha pessoal, não a injustiça estrutural. Cristo, por outro lado, fez o oposto: exaltou os pobres e condenou os ricos. A passagem “tive fome e não me destes de comer” (Mateus 25:35-45) é praticamente um manifesto contra a indiferença e a responsabilização exclusiva do indivíduo.
O cristianismo também é profundamente pacifista (e aqui falamos do cristianismo em essência, não das ações da Igreja, como as Cruzadas, que reforçam os exemplos de uso da fé para fins políticos, econômicos e de poder). A retórica armamentista e a reverência à força militar são contradições claras. A cruz, símbolo central da fé, é a rendição ao amor. Mas a direita prefere apoiar a posse de armas, justificando tirar a vida e a “justiçagem” pelas próprias mãos. E, na defesa desse ponto, não se importa com o possível crescimento da violência, de crimes banais e com a falta de controle e preparo emocional da população para portar armas, entre tantos outros argumentos contrários ao armamento, tratado como sinônimo tosco de liberdade.
Usar a fé como ferramenta de poder também foi uma das críticas mais duras de Jesus aos fariseus. O uso da Bíblia como bandeira partidária é, portanto, uma afronta aos valores cristãos que dizem defender, mas que usam em benefício próprio ou de grupos, como forma de manipulação.
Alguns expoentes da fé cristã também podem ser considerados amigos da razão. Santo Agostinho e Tomás de Aquino buscavam compreender o mundo por meio da lógica. O negacionismo científico da direita nada mais é do que uma afronta à razão, à ciência e uma estratégia de poder. E, por fim, as mentiras — modernamente chamadas de fake news — nada mais são do que o falso testemunho, criticado tanto nos Evangelhos, por Jesus, quanto citado como mandamento sagrado (não mentir).
O problema desse modus operandi é pegar uma questão específica, não unânime, no meio de uma vastidão de questões harmônicas, e usá-la de forma falaciosa para sustentar uma generalização e promover uma dicotomia infundada.
Inclusive, muitas pautas da esquerda não são somente cristãs; são também comuns a muitas outras matrizes religiosas ou mesmo a valores éticos universais. Generalizar que a esquerda é antirreligiosa ou anticristã com base em uma pauta de valores morais individuais (descriminalização da cannabis medicinal, por exemplo) é, além de hipocrisia, uma falácia. É o mesmo que dizer que a direita é contra a vida porque defende a posse de armas (que servem para matar). Mas, assim como a questão das armas, a descriminalização da cannabis tem especificidades e regulamentações quanto ao uso e à finalidade, com uma série de argumentos favoráveis e contrários que pesam de acordo com os valores individuais de cada um.
A religião como instrumento de poder: a Igreja medieval e a manutenção do status quo
É mais cômodo, e também estratégico, usar a religião para distorcer a realidade social do que expressar a verdade. E o uso da religião como forma de dominação política e de sustentação dos modelos econômicos vigentes por parte dos detentores do poder é histórica. Podemos buscar exemplos na Idade Média.
Nesta época, a Igreja Católica desempenhou papel central na manutenção do status quo. O clero era uma das classes dominantes, possuindo vastas propriedades (latifúndios) e exercendo grande influência política e social. Os camponeses, maioria da população, eram subjugados por um sistema feudal que os obrigava a trabalhar nas terras dos senhores, obedecendo também à Igreja, que legitimava essa exploração.
A Igreja pregava que a divisão de classes no sistema feudal era uma ordem divina, cabendo ao servo aceitar. Questionar a autoridade do rei, do nobre ou do senhor feudal era confrontar a própria ordem divina. Essa relação ficava evidente na hierarquia piramidal tanto da Igreja quanto do Estado e no simbolismo de cerimônias de coroação dos nobres praticadas pela Igreja.
A Igreja era uma verdadeira latifundiária, recebendo terras, inclusive como doação para que os poderosos da época “ganhassem o céu”. Além disso, monopolizava o saber e promovia guerras para “evangelizar” povos bárbaros, o que também interessava a fins comerciais, econômicos e políticos. Promovia perseguições e uma literal caça às bruxas (Santa Inquisição).
Esse cenário reflete uma relação de poder em que a religião servia para legitimar a opressão e a desigualdade social. A Igreja, ao promover a ideia de que a salvação eterna compensaria as dificuldades terrenas, contribuía para a passividade dos oprimidos. Situação que se tornou insustentável, a ponto de dar origem à Reforma Protestante.
O neopentecostalismo e sua influência no cenário atual brasileiro
O neopentecostalismo emergiu como uma força religiosa significativa, adaptando-se ao contexto sociopolítico e cultural e tendo forte influência. Mas, antes de entrar na questão, cabe ressaltar que a Reforma Protestante originou o protestantismo no século XVI. O pentecostalismo é um movimento distinto, surgido no século XX, porém derivado do protestantismo.
E aqui não tratamos de dogmas, liturgias ou da fé propriamente dita, mas do subtexto social, econômico e ideológico que faz com que crenças religiosas sejam usadas como arma política.
Segundo o site Biblia.com.br, o pentecostalismo teve suas origens no começo do século XX, em Los Angeles, Estados Unidos. A corrente religiosa foi trazida ao Brasil na primeira metade do mesmo século por missionários suecos, dando origem à Congregação Cristã no Brasil (1910) e à Assembleia de Deus (1911).
Oliveira (2000), em “Ofertas Neopentecostais: Teologia da Prosperidade e Batalhas Espirituais — um estudo comparativo entre o Neopentecostalismo e o Pentecostalismo”, apresenta a mesma origem, porém abre possibilidades para considerar influências históricas anteriores que contribuíram para esse surgimento.
O pentecostalismo se caracteriza pela ênfase na experiência direta e pessoal com Deus, destacando a atuação do Espírito Santo. Já o neopentecostalismo é derivado do pentecostalismo, surgido mais recentemente, por volta de 1970, também classificado como a terceira onda do movimento pentecostalista. Alguns autores posicionam a Igreja do Evangelho Quadrangular como ponte entre essas fases.
Segundo a Wikipédia, no Brasil alguns dos grupos mais representativos dessa corrente são a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça de Deus, a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Renascer em Cristo. Em geral, possuem evangelismo massivo (muitas possuem ou utilizam TVs, rádios, jornais, editoras, literaturas próprias e sites).
Segundo o Biblia.com.br, nessa corrente o foco se move da busca pelos dons espirituais para a prosperidade material, com entusiasmo pela Teologia da Prosperidade. Enquanto o pentecostalismo tradicional prega a salvação e a santificação como formas de aproximação com Deus, o neopentecostalismo associa a fé ao sucesso financeiro e pessoal.
Paulo Lobo Cintra comenta que a síntese das ideias centrais do movimento neopentecostal, feita por Antônio Gouvêa de Mendonça (Mendonça, 1989, p. 52), destaca configurações empresariais de oferta de bens e serviços religiosos; distanciamento da Bíblia; frequentadores comportando-se como clientes; entre outros fatores. A instituição religiosa comporta-se como intermediária entre os anseios dos “indivíduos excluídos no modelo econômico vigente”.
Mariana Reinisch Picolotto, no artigo “O pentecostalismo no Brasil: uma reflexão sobre novas classificações”, cita que ele se caracteriza pela forte campanha da Teologia da Prosperidade, cuja filosofia difunde a crença de que o cristão deve ser próspero, saudável, feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos (associando sucesso material e bênção divina). Também se caracteriza pela ênfase na realização de milagres, com testemunhos públicos; ênfase em rituais emocionais e, sobretudo, em rituais de cura, associados a uma representação demoníaca dos males (em uma espécie de sincretismo religioso); uso intenso dos meios de comunicação de massa; combinação de religião com marketing, dinheiro e, em alguns casos, política (Oro, 2001:73).
Segundo o site Brasil Escola, essa abordagem atrai especialmente as classes populares, oferecendo uma alternativa religiosa que promete transformação social através da fé. Porém, Picolotto, em sua pesquisa, atesta que o pentecostalismo vem deixando de ser uma religião somente das massas, passando a atrair a classe média.
Entretanto, essa ideologia também serve para reforçar a passividade diante das adversidades sociais, promovendo a ideia de que a pobreza é resultado de falta de fé ou de esforço pessoal, em vez de ser vista como consequência de estruturas sociais injustas. Ou seja, casa-se com o discurso da meritocracia defendido e distorcido pela direita.
Uma crença compatível com o neoliberalismo
Sendo a religião parte da cultura, e sendo os modelos ou sistemas econômicos, como o capitalismo, o liberalismo e o neoliberalismo, também manifestações sociais, políticas e econômicas, em uma teia complexa de inter-relações, é preciso questionar as relações existentes entre esses movimentos religiosos, cuja ideologia e discurso se enquadram na ideia neoliberal, já que a história nos comprova que religião e poder caminharam desde sempre lado a lado, desde os antigos rituais realizados pelo homem primitivo, até modernamente, de forma mais sofisticada.
O crescimento das organizações neopentecostais, o crescimento do número de fiéis e, de forma concomitante, a hegemonia do sistema neoliberal no Brasil são fatores que motivam maior investigação sobre o tema por parte de diversos autores.
Paulo Lobo Cintra questiona isso em um artigo. Para ele, a mentalidade neoliberal atinge todas as áreas da vida dos indivíduos. O sagrado não fica à margem do processo de materialização, individualização e mercantilização que ela propõe.
Ele evidencia isso abordando diversas faces dessa atuação: desde a estrutura funcional dessas igrejas, o uso dos meios de comunicação, a utilização de slogans e discursos amparados em marketing empresarial para divulgar palestras, cultos e campanhas. E o mais delicado: a relação de fé entre igreja e fiel ou entre este e Deus (a própria essência teológica é estruturada de modo a coincidir com a visão neoliberal de mundo).
Cintra, com base em diversos autores, afirma que o discurso empreendedor, para obtenção do sucesso individual por meio da fé, é atributo primordial para a atração do fiel como cliente (Silva, 2013). O autor ainda cita Gilberto Nascimento, o qual ressalta a visão do bispo Edir Macedo, da IURD, de que, quando os fiéis ajudam a igreja a divulgar a mensagem, estariam firmando um compromisso com o Criador e adquirindo o direito de se sentir como “sócios de Deus” (Nascimento, 2019, p. 10).
Fernando de Barros e Silva, citado no mesmo artigo, afirmou que essas organizações possuem, além de “[...] promessas de salvação instantâneas, intimidade com o dinheiro, tolerância em relação aos costumes dos fiéis”, uma “organização empresarial sofisticada”, enfatizando que a “[...] exploração dos meios de comunicação de massa e técnicas de persuasão enérgicas fazem dos neoevangélicos o McDonald’s da religião contemporânea”.
Reconhecimento da religiosidade popular
O que a esquerda precisa entender é que a religiosidade é parte integrante da identidade cultural do povo. Isso significa compreender que os valores, sobretudo cristãos, têm peso considerável na formação da opinião, na consciência política e de classe e no modo de agir da sociedade brasileira.
Isso implica abandonar a postura elitista que vê a religião apenas como um ópio do povo (Marx) e fonte de manipulação e, em vez disso, compreender a fé como força potencialmente transformadora, como espaço de resistência, de formação política, de construção de valores, e opor-se ao uso manipulador que garante o interesse dos dominantes. Sem contudo, colocar-se na posição de supremacia, típica do academicismo que normalmente ostenta e a afasta do povo.
Obviamente, cabe dialogar com todas as matrizes religiosas. E essa visão inclusiva já é praticada pela esquerda, na medida em que, ao defender o Estado laico (laico não significa ateu), considera que todas as crenças merecem espaço e respeito, e, sendo os locais públicos territórios de todos e mantidos pela coletividade, devem ser neutros em “lado” religioso.
Talvez aqui esteja outra distorção de que a oposição, ou a direita especificamente, se aproveita. Ao criticar a hegemonia católica e mesmo a hegemonia cristã, pensando em incluir e não segregar as demais matrizes, a sociedade, majoritariamente cristã, vê tal atitude como afrontosa, desrespeitosa ou flerte com o ateísmo (o qual também merece seu espaço no meio social e público).
O problema maior é que as religiões não podem ser entendidas apenas como foco ou locus de crença religiosa, de contato com o divino e com a espiritualidade em uma experiência individual, mas como organizações com poder político, econômico e influência cultural massiva.
E elas não ficam restritas aos seus cultos ou celebrações: interagem e participam da vida sociopolítica — o que é justo. A situação fica mais densa quando essas instituições adotam lado ou viés político-ideológico e passam a defender determinadas pautas ou, pior, distorcer situações para manipular fiéis, de modo a atender aos objetivos de seu grupo ou, ainda, de seus líderes, normalmente poderosos e influentes.
A esquerda — e nenhuma força democrática — vai impedir esse uso da religiosidade para fins políticos, éticos ou escusos. Portanto, é fundamental compreender esse contexto e se posicionar. Estabelecer parcerias com líderes religiosos que compartilham valores de justiça social, promovendo uma agenda comum que una fé e política.
Isso pode incluir diálogos inter-religiosos, apoio a movimentos sociais baseados em comunidades de fé e participação conjunta em ações de solidariedade. Afinal, a própria Bíblia, no caso dos cristãos, apresenta inúmeros exemplos, em seus Evangelhos, de ações de justiça social, de crítica à exploração e de tantos outros valores comuns à esquerda. Isso envolve reinterpretar as Escrituras à luz das questões contemporâneas, como desigualdade social, opressão e direitos humanos.
É preciso substituir a Teologia da Prosperidade pela Teologia da Libertação. De acordo com a Wikipédia, a Teologia da Libertação é uma corrente teológica fundada por Gustavo Gutiérrez, que busca interpretar a fé cristã a partir da perspectiva dos pobres e oprimidos, especialmente na América Latina.
Francisco de Aquino Júnior estuda o tema e argumenta que a libertação do povo de Deus (Êxodo) e a busca pela terra prometida indicam que não há separação entre o religioso e o político. Gutiérrez compreendia o termo “libertação” em três dimensões que se condicionam mutuamente e formam um processo único e global: a política — que se relaciona com as aspirações das classes e dos povos oprimidos, destacando o caráter conflituoso do processo econômico, social e político, não acreditando que o desenvolvimentismo pudesse solucionar a pobreza estrutural; a dimensão humana; e, por fim, a libertação do pecado, raiz de toda injustiça e opressão.
No Brasil, um expoente dessa corrente é Leonardo Boff. E não se pode omitir que a Teologia da Libertação foi reprimida pelo Vaticano, pelos papas João Paulo II e Bento XVI, demonstrando a influência da Igreja para além da religiosidade puramente considerada.
Combate à hipocrisia religiosa
Para além das ações integradoras, é preciso também denunciar a instrumentalização da religião para fins políticos que perpetuam a desigualdade, promovendo uma visão ética e coerente da fé. Isso implica criticar práticas religiosas que servem para justificar políticas que favorecem as elites e o status quo, enquanto exploram a fé popular.
A esquerda brasileira precisa encontrar a fé: uma fé que não seja apenas intelectual, mas que se conecte com as aspirações espirituais e sociais do povo. Ao reconhecer a importância da religiosidade popular e estabelecer um diálogo genuíno com as diferentes vertentes culturais e religiosas, a esquerda já tem a estrela guia. Precisa, porém, calçar suas sandálias, sair pregar seu “evangelho”, mas, sobretudo, atuar na prática, no exemplo, nas bases, reconstruir seu apoio e promover uma transformação social que seja, de fato, inclusiva e justa, mesmo que precise expor os fariseus e expulsar os vendilhões que querem lucrar com a fé alheia.
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