O acesso universal à saúde pública e a retórica das Leis no Brasil


Segundo o Portal da Saúde, no Brasil, até 1988, a Saúde era um benefício previdenciário, um serviço comprado na forma de assistência médica ou uma ação de misericórdia oferecida à parcela da população que não tinha acesso à previdência ou recursos para pagar assistência privada.

Em meados de 1970, surge o Movimento de Reforma Sanitária, propondo uma nova concepção de Saúde Pública para o conjunto da sociedade brasileira, incluindo a Saúde do Trabalhador.

Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, a saúde tornou-se "um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas", ou seja, pode-se dizer que a Saúde figura entre os direitos fundamentais do homem.

Artigo 196 da Constituição Federal

Literalmente, o artigo 196 da Constitui Federal Estabelece: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990

A Lei infra-constitucional supracitada dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.

No artigo. 2º consta: “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”

No § 1º: "o dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação."

Gostaria, no entanto, de chamar a atenção para alguns trechos das Leis acima mencionadas. Na Constituição Federal fica claro que “a saúde é direito de todos”. Ou seja, todos que necessitarem da assistência médica têm por imposição Constitucional o direito de ser atendido, sem qualquer distinção quanto a sexo, raça, estado civil, idade, etc. Em outras palavras, fica evidente o acesso universal e igualitário.

Acesso universal e igualitário também é mencionado na Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990.  Mas o que significa acesso universal ?

Segundo o dicionário Ruth Rocha, "universal" é aquilo que abrange tudo, ou se estende a tudo, ou por toda parte. Que tem o caráter de absoluta generalidade.

Se não bastasse, adentram a esta discussão, mais duas Leis estabelecendo especificidades ao acesso à saúde, que deveria, por definição constitucional, ser universal, e (redundância ?) atender a todos igualitariamente. São elas:

Lei Nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.

Art. 3o:  É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população;
b) preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas;
c) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso;

Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

Alguns defendem que o acesso igualitário (princípio da equidade  não significa que o SUS deva tratar a todos de forma igual, mas sim respeitar os direitos de cada um, segundo as suas diferenças, apoiando-se mais na convicção íntima da justiça natural do que na letra da lei.

Então, mais uma vez, como no caso das cotas para o ingresso nas universidades, pela impossibilidade do Estado garantir o acesso universal, como formosamente se colocou na legislação, cria artifícios que desvirtuam ou tornam relativo o artigo 5º da Constituição: todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza.

De fato, todos são iguais, e não na medida de suas diferenças; mas iguais nas dificuldades de se valer dos direitos que são definidos nas Leis. 

Obviamente, diversos fatores se coadunam para essa realidade:  políticos, sociais, culturais, econômicos, etc. Mas sem dúvida, um deles tem um peso relativamente grande: a qualidade dos nossos políticos (legisladores e gestores). 

Mas aqui entraríamos em outra questão: quem elege os políticos ? Que fração da sociedade eles representam ? Que condições o cidadão tem para avaliar objetivamente a competência e caráter dos candidatos ? Qual o papel do cidadão (tantos nos direitos, quanto nos deveres) ? E o que é materialmente possível oferecer, tendo em vista (e voltamos nos aspectos culturais) que a população exige muito do Estado ? O Estado tem a seu dispor a "reserva do possível", dada a escassez de recursos, mas o mesmo Estado garante como direito social o mínimo existencial. 

Estado cada vez mais paternalista, que deu mais um passo em substituir o papel da família com a edição da Lei 12796/2013, que prevê educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, quando sequer cumpre seu papel de oferecer vagas na educação infantil para os filhos e filhas de pais trabalhadores ou em condições  socioeconômicas precárias. Que sequer conseguiu definir o que é, tampouco alcançar, uma educação de qualidade. 

E que para piorar, em um discurso demagógico e populista, esperando que as leis se autoexecutem, os políticos agora levantam a bandeira da educação integral, quando faltam vagas e estrutura para atender a atual demanda em tempo parcial. Mas isto é assunto para outro tópico.

Então fica a pergunta: se todos tem direito à saúde (universal e igualitária), se um idoso e um adolescente necessitar de atendimento médico em uma unidade pública (muitas lotadas e com falta de recursos), quem terá a prioridade ?  A vida de quem é tratada com primazia ? Onde fica o direito de todos ?

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