A
dinâmica caótica, urbana e estressante da vida moderna trouxe e naturalizou nas
relações sociais as visões de vida mais frias, individualistas, mediadas pela
tecnologia.
Após o
expediente laboral, além das rotinas domésticas, do cuidado com a família e
consigo, o trabalhador em regra precisa dedicar novamente tempo para o
trabalho, ou seja, para se manter apto, qualificado, atraente para o mercado
que descarta sem dó, fazendo cursos e atualizações, isto quando não precisa
resolver questões trabalhistas fora do horário de expediente ou fica de
sobreaviso.
O que
resta para o lazer, para o descanso físico ? E me restrinjo ao descanso físico,
porque o descanso mental é ainda uma questão mais delicada ante diversas
preocupações e pressões que paulatinamente fomos aceitando como natural, como
sinônimo de eficiência e de produtividade na busca pelo suposto crescimento
meritocrático.
A falta de tempo tornou-se o mantra predominante. Os períodos de contemplação, descanso, lazer e de crescimento individual e espiritual, dentro de uma lógica produtivista, passaram a
ser vistos como perda de tempo, sendo o tempo igual a dinheiro, e não mais tempo igual a vida, como outrora foi, ou como efetivamente o é.Porém,
como a maioria dos fenômenos sociais e culturais, o processo não é linear, mas
ocorre de forma dialética. Ao mesmo tempo em que pressões econômicas, políticas
e ideológicas pressionam o comportamento social para dado sentido, movimentos
de resistência e de oposição se manifestam e colocam seu contraponto.
Muitas
vezes são tidos como minorias sem voz, outras vezes são marginalizados, como
por exemplo, muitos dos movimentos sociais, outras vezes, estes próprios
movimentos acabam se subdividindo e criando vertentes de pensamento. E em
alguns casos, o próprio sistema capitalista, de mercado, coopta estas
tendências e as transforma em fontes de lucro.
Hoje, para cooptar o desejo das pessoas de terem um momento de lazer na área rural, curtindo o campo e suas atividades nos finais de semana, muitos hotéis fazenda ficam lotados. São passeios a cavalo, pescaria, comidas caseiras, etc. Mas o negócio vai além. Em algumas estâncias, o cliente / turista, paga a hospedagem para capinar, colher produtos agrícolas (uva, frutas, milho, tirar leite), e ajuda, como se fosse lazer ou brincadeira, na produção. Ou seja, de certa forma, a estância lucra com o turismo, com a hospedagem, e ainda consegue mão de obra que paga para realizar parte do trabalho como sendo diversão.
O fato é que atualmente, esta dinâmica caótica, produtivista, materialista, começa a ser questionada, com movimentos novos, pregando outras práticas sociais e com o resgate de práticas de outras épocas, não de forma anacrônica, mas com as devidas atualizações ao atual contexto. E algumas delas, o caráter capitalista de lucro fica mais distante, se destacando a espontaneidade e o caráter popular destas práticas.
Neste
universo, o resgate de práticas tradicionais em suas diferentes vertentes, como
a meditação, a valorização e a necessidade de preservação ambiental, o espírito
de comunidade, o retorno de brincadeiras antigas (se contrapondo ao mundo
conectado via celular no qual todos estão mergulhados), a medicina popular (o
uso de chás, ervas, utilizadas pela sabedoria popular e hoje incorporadas na
medicina acadêmica), a alimentação saudável, a agroecologia, os benzimentos e o
resgate das tradições religiosas populares, voltaram ao discurso dos movimentos
sociais. Voltaram a receber a atenção de parte da sociedade.
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Ilustra a analogia |
Sabe-se
que as relações sociais, culturais, econômicas, se dão em determinados
territórios ou espaços. A relação entre sociedade e natureza é vital para a
materialização das práticas e saberes e para a manutenção do espaço de
vivência, transmissão e conservação deste caldo cultural.
E aqui,
a atuação do poder público, como agente organizador do espaço formal, como
fomentador da cultura, como fiscalizador e incentivador da preservação
ambiental e do uso consciente dos recursos naturais, torna-se relevante.
Em
Rebouças – PR, através da Lei 2042/2017, foi criado o Parque Ambiental
Municipal “Monge João Maria", com área de aproximadamente 69 mil m². Entre
outros objetivos, segundo a Lei, o parque terá como finalidade a preservação
ambiental, a preservação do patrimônio histórico e cultural, tornando-se também
alternativa de lazer e visitação conforme as possibilidades.
Desta
forma, mais do que um espaço de preservação ambiental imposto por lei, ou de
lazer urbano, o Parque Ambiental reaviva a história de João Maria, um dos
monges que passou pela região Sul do Brasil na transição do Século XIX para o
XX, tendo sua trajetória relacionada à religiosidade, aos benzimentos e às
crenças populares, como também à resistência social em um período de
contradições, revoltas, desigualdades e rupturas, como por exemplo, a Guerra do
Contestado.
Localizado
próximo ao centro da cidade de Rebouças, o lugar é de fácil acesso,
predominantemente calmo (especialmente nos dias de semana), agradável, simples,
limpo e muito bem cuidado. Neste quesito, merece elogio o responsável pela
manutenção, que executa um trabalho impecável.
Há exemplares da flora regional nativos e reflorestados, plantas medicinais, uma nascente de água (chamado de Olho d'água de São João Maria), onde muitas crianças já foram “batizadas” ou consagradas e sobre o qual há crenças que ilustram o encantamento do lugar conforme a crendice religiosa popular.
Atualmente,
as práticas e saberes tradicionais, deixaram de ser apenas uma crendice para
fazer parte das políticas de saúde como instrumento complementar de terapia.
Em
Rebouças, por exemplo, há uma Lei (1401/2010) que define e regulamenta as
práticas dos detentores de ofícios tradicionais de saúde popular associado a
saberes, conhecimentos e práticas tradicionais. Regulamenta, inclusive, o uso
popular das ervas medicinais e a preservação ambiental delas.
Segundo
o site “PR Cultura”, três das detentoras deste ofício participaram de uma mesa
redonda no Museu Paranaense - MUPA. Isso revela que as práticas tradicionais
estão sendo efetivamente reconhecidas e recebendo a atenção da população, do
Estado (edição de leis, manutenção dos espaços de convivência), da academia,
com estudos que reforçam sua importância, sendo registrados e reconhecidos seus
aspectos culturais, simbólicos, religiosos, etc.
Ana
Maria Benzedeira, Dona Guina e Dona Rosinha participaram da referida roda de
conversa no MUPA, contando sobre suas trajetórias e saberes tradicionais de
cura, com a participação da antropóloga Taísa Lewitzki e mediação da arqueóloga
do MUPA, Claudia Parellada.
As três
participantes integram o Movimento Aprendizes da Sabedoria (MASA) e a Rede
Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais e o Conselho Estadual de Povos
Indígenas e Comunidades Tradicionais do Paraná
Ana
Maria é benzedeira na cidade de Rebouças (PR). Aprendeu o ofício de benzer com
seu pai. É conhecedora das profecias do Monge João Maria e defensora de seus
Olhos d’Água.
Dona
Guina é benzedeira, remedieira e costureira de rendidura. Conhecedora das
plantas medicinais e de conhecimentos tradicionais de cura, ministra oficinas e
cursos para benzedeiras em formação.
Dona
Rosinha é benzedeira, arrumadeira e costureira de rendidura do município de
Irati (PR). Festeira do Divino, cantadeira de festas tradicionais e devota do
Monge João Maria, integra a equipe de pesquisa do Mapeamento Sociocultural das
Benzedeiras e Ofícios Tradicionais de Irati.
Cartaz da Festa do Monge João Maria realizada anualmente no Parque |
Neste sentido, o Parque Ambiental do Monge não é apenas adequado e útil para a sociedade encontrar momentos de lazer, recreação e contato com a natureza, como também serve como lócus de realização, de divulgação, de reforço e de simbolismo para muitas destas práticas culturais, religiosas e populares tradicionais.
Ressalta-se
que há no parque uma grutinha com imagens de santos diversos e do monge João
Maria. Atualmente, foi construída uma gruta maior, com uma imagem em madeira do
Monge, esculpida pelo Reboucense Tico Molinari. Há ainda uma pequena trilha
entre as árvores. Há também um campinho de futebol (improvisado) e recentemente
foi aprimorada a infraestrutura, com bancos, lixeiras, banheiro e quiosques com
churrasqueira.
A
própria Lei Municipal 2042 de 2017que criou o parque prevê que as melhorias
irão ocorrer gradativamente, conforme as condições do Município e a
disponibilidade de recursos, porém, quanto às churrasqueiras, considero um
ponto de atenção.
Este
atrativo é de certa forma incoerente, pois embora possa ser interessante aos
visitantes ter conforto e condições de permanência, democratizando o local,
poderá gerar uma disputa de territórios entre diferentes usuários para as quais
o parque foi idealizado.
Em
outras palavras, churrasqueiras podem atrair famílias para um almoço, mas ao
mesmo tempo também atraem o público mais festivo, e se não houver a expressa
regulamentação do consumo de bebidas alcoólicas, do uso de sons automotivos ou
mesmo portáteis, poderá gerar incompatibilidade com o público que busca o
parque pelo seu aspecto religioso (encontro de benzedeiras, rezas, batizados),
meditação, lazer relaxante, etc.
Lembrando
ainda que se o objetivo do lugar é de preservação ambiental, conforme
disposto no artigo 4 da Lei Municipal 2042/2017, a poluição sonora, bem
como outras atitudes que podem degradar o meio ambiente, são práticas que
precisam ser regulamentadas e serem condizentes com as Leis Gerais e
principalmente com as Leis Ambientais (que estabelecem limites e sanções),
tanto para evitar prejuízo à natureza quanto para que o local seja um ponto de
conscientização.
É
preciso que o poder público regulamente e conscientize para que todos os
segmentos da sociedade tenham acesso a espaços condizentes com as suas
práticas, sejam elas festivas, esportivas ou contemplativas ou religiosas /
culturais.
O
geógrafo brasileiro Milton Santos em seu livro “Por uma outra globalização: do
pensamento único à consciência universal", traça uma analogia para
explicar a disputa por territórios, valendo do exemplo da quadra poliesportiva.
Na
analogia, Santos (2000) compara a quadra poliesportiva a um território e as
equipes que jogam nela equivalem aos diferentes grupos sociais que utilizam
este espaço. Cada esporte tem suas regras, o território reflete em sua
organização estas características. As linhas na quadra que determinam as regras
do futebol são diferentes das linhas utilizadas pelo basquete. Cada esporte tem
suas características, regras, tempos, distâncias, etc. É impossível, na mesma
quadra, haver concomitantemente, um jogo de futebol e de basquete. Pode até
ocorrer, mas seria um caos.
Assim,
um espaço público ou social utilizado por skatistas é diferente de um espaço
adequado para futebolistas ou para pessoas que estão intencionadas a contemplar
a natureza. E assim como na quadra, nem sempre é possível duas atividades
diferentes serem realizadas ao mesmo tempo. Neste sentido, entra a necessidade
de regulamentação do uso do espaço, não como forma de inibir ou cercear o uso
deste ou daquele grupo, mas como forma de todos terem a mesma possibilidade ou
direito ao uso do espaço, especialmente, quando o espaço se destina a uma
finalidade específica.
Assim,
ao desenvolver um espaço, o Poder Público deve estar atento e realizar todas as
ações orientadas para aquela finalidade específica, de modo a não criar
contradições entre os diferentes públicos e entre os objetivos do lugar.
Obviamente, o bom senso e a conscientização do próprio usuário também devem
existir.
Lembrando
que, além do bom senso, o artigo 42 do Decreto Lei nº 3.688 (Lei das
contravenções penais), estabelece algumas restrições no que tange a perturbação
do sossego. E mais, a Lei 9605 de 1998, que trata das condutas lesivas ao meio
ambiente, é farta de orientações e restrições, sobretudo no que tange às áreas
de conservação ou de preservação ambiental.
E com
relação à poluição sonora, a Ciência confirma que a partir de 50 decibéis o
corpo humano já sente o estresse decorrente do barulho (um secador de cabelo
emite em torno de 80 a 90 decibéis).
Uma
opção seria a instalação das churrasqueiras, se necessárias de fato, em local
mais afastado do olho de água, da gruta com as imagens religiosas.
Unindo
preservação ambiental, práticas e saberes tradicionais, com a qualidade de
vida, também poderia ser implementada uma pista de caminhada ou uma academia ao
ar livre, um espaço para o reflorestamento de espécies nativas, de plantas
medicinais, etiquetando as árvores, abrindo para visitas escolares e
contribuindo para que alunos conheçam as espécies botânicas locais. Estas são
apenas ilustrações de ações que também seriam condizentes com a finalidade do
lugar.
No texto
original escrito no blog Vozes do Verbo,
sugeria-se a inserção de uma imagem de tamanho maior ou até real do
Monge João Maria, mas como citado anteriormente, está ideia foi concretizada
recentemente.
Destaca-se
também que em Porto União – SC (divisa com União da Vitória – PR), existe o
parque do Monge João Maria, personagem que passou pela região na época da
Guerra do Contestado.
Segundo
o site “https://turismo.portouniao.sc.gov.br”, o Parque leva o nome de Monge
João Maria por ter sido ele uma importante figura do Contestado, estando em
Porto União em 1896, fazendo várias profecias e abençoando a água que jorra no
pocinho. Em 2008 foi inaugurado o parque que possui mata nativa preservada e
passarelas para visitação.
No
Município da Lapa – PR, a figura do Monge João Maria também é homenageada.
Porém, além da importância religiosa, expressa nas visitações à gruta lá
existente, o parque também tem importância geológica, pois há diversas cavernas
de arenito, supostamente utilizadas pelo Monge em suas passagens pelo local.
Segundo
o Instituto Água e Terra, desde meados do século XIX até o início do século XX,
surgiram ou passaram pelos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul indivíduos conhecidos como “monges”. Cultivavam barba longa, sandálias em
couro cru, barrete (pequeno chapéu), cajado na mão e um terço pendurado no
pescoço, vivendo normalmente entre áreas de floresta e grutas.
Entre
estes “monges”, três tiveram destaque na região da Lapa e de outras terras do
Paraná e de Santa Catarina, promovendo benzimentos, curas, conselhos, em uma
época carente de educação, de acesso à saúde e especialmente, marcada por
rupturas sociais e políticas.
O
primeiro, João Maria d’Agostini, era um imigrante italiano que veio ao Brasil
em 1844. Era provavelmente um frei da ordem de Santo Agostinho. O segundo foi
Anastás Marcaf, que chegou à Lapa em 1894, durante a Revolução Federalista,
intitulando-se “João Maria de Jesus.
Ainda
segundo o Instituto Água e Terra, Miguel Lucena de Boaventura foi o terceiro
monge. Além do aconselhamento espiritual, benzimentos e curas, como os
primeiros monges, ele dava ao povo instrução militar, pois sua passagem está
atrelada ao contexto da disputa do Contestado, uma época de forte tensão
política e social de nossa história.
Outros
municípios também têm locais supostamente visitados pelo Monge ou pelos Monges,
especialmente bicas ou nascentes de água, o que demonstra que a História é um
processo, integrado com o desenvolvimento social, econômico, com a cultura, com
a ocupação do espaço geográfico, enfim, inter-relacionado, e que merece ser
melhor compreendido.
Assim como argumentado no texto tratando do tradicionalismo gaúcho no Paraná, sobre a influência do Tropeirismo, das revoltas, dos movimentos sociais, vemos que a história do Paraná é riquíssima. Talvez falte aprofundamento e valorização para reforçar a nossa identidade cultural de paranaense, pois sem dúvida, não somos um povo carente de história. E valer-se dos atrativos turísticos, de lazer, de encontro social, da cultura, da religiosidade, da culinária, é uma interessante estratégia.
Parabéns pelo conteúdo, fico realizado que em Rebouças /Paraná acontecem ações concretas pela conservação e preservação de áreas verdes de interesse socioambiental.
ResponderExcluirHaverá mudanças na infraestrutura com a construção de complexo esportivo. Esperamos que mantenha a inspiração conservacionista.
ExcluirExcelente!! Importantes ponderações que devem ser consideradas pelos administradores públicos.
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