Nos últimos anos, o carro elétrico tem sido amplamente apresentado como uma alternativa sustentável aos veículos abastecidos com combustíveis fósseis. Essa visão é reforçada por uma série de campanhas de marketing que destacam os benefícios ambientais dos carros elétricos, principalmente em termos de redução de emissões de poluentes. Ganha destaque ainda em época de elevação no preço do petróleo, por exemplo.
Contudo, ao analisarmos essa questão sob a viés da sustentabilidade e dos impactos socioambientais, é necessário ponderar sobre os verdadeiros impactos dessa tecnologia, benefícios e desvantagens ou lacunas, revelando que a sustentabilidade dos carros elétricos é, em muitos aspectos, um mito. Ou na melhor das hipóteses, supervalorizada.É inegável que os carros elétricos não utilizam combustíveis fósseis diretamente, o que os torna uma opção menos poluente em termos de emissão de gases do efeito estufa ou com outros potenciais poluentes. Porém, esse argumento perde parte de sua força ao considerarmos a fonte da energia elétrica que alimenta esses veículos.
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No Brasil, por exemplo, a matriz energética é predominantemente hidrelétrica, representando cerca de 60% da produção de eletricidade do país. Embora considerada limpa, a geração de energia hidrelétrica está longe de ser
isenta de impactos ambientais e sociais.A construção de barragens causa a inundação de vastas áreas, levando à perda de biodiversidade, à deslocação de comunidades ribeirinhas e à alteração de ecossistemas inteiros. Um exemplo emblemático é a usina de Belo Monte, no Pará, cujas obras resultaram em conflitos sociais e danos ambientais irreversíveis, colocando em risco todo sistema do rio Xingu.
Além disso, em períodos de estiagem, como os que têm se tornado cada vez mais frequentes devido às mudanças climáticas, a dependência da energia hidrelétrica revela suas fraquezas.
A escassez de água nos reservatórios leva à necessidade de racionamento de energia e à mudança da bandeira tarifária para vermelha, que representa custos adicionais para toda a sociedade, incluindo consumidores domésticos e industriais. Essa elevação nos custos energéticos se reflete diretamente na cadeia produtiva, elevando os preços de bens e serviços e contribuindo para a inflação. Dessa forma, os carros elétricos, ao dependerem de uma matriz energética sujeita a tais variações, não estão isentos de contribuir para problemas econômicos mais amplos.
Outra questão é que quando há escassez hídrica, para dar conta da demanda atual de energia, as usinas termoelétricas (que usam fontes como petróleo) são acionadas. Com uma frota maior de veículos demandando energia, é óbvio que a a necessidade de acioná-las será mais frequente, ou mais barragens e usinas hidrelétricas precisarão ser construídas. A energia solar ainda representa pouco na matriz energética.
Outro ponto que merece destaque é a autonomia das baterias dos carros elétricos, que ainda é um desafio significativo. Modelos populares, como o Nissan Leaf, oferecem uma autonomia média de cerca de 240 km por carga, enquanto veículos como o Tesla Model 3 podem alcançar até 500 km em condições ideais. No entanto, esses números muitas vezes não correspondem à realidade do uso cotidiano, especialmente em condições adversas, como trânsito intenso ou climas extremos. No Brasil, sabemos que existe ainda o problema da precariedade das estradas e rodovias.
O tempo de recarga também é um fator limitante. Mesmo com carregadores rápidos, que podem recarregar 80% da bateria em cerca de 30 minutos, ainda é um tempo considerável comparado ao abastecimento de um veículo a combustão.
Além dessas questões, a infraestrutura de recarga é um desafio. A oferta de pontos ainda é limitada, especialmente fora dos grandes centros urbanos, o que restringe a mobilidade e a conveniência dos veículos elétricos. Para quem depende do carro para percorrer longas distâncias, a falta de infraestrutura adequada pode ser um empecilho significativo.
Apesar dos problemas mencionados, os carros elétricos também oferecem benefícios inegáveis. Eles são mais silenciosos, têm menos peças móveis, o que reduz a necessidade de manutenção, e, em áreas urbanas, podem contribuir para a redução da poluição do ar. Contudo, esses aspectos positivos precisam ser ponderados para se concluir que compensam os desafios ambientais, econômicos e sociais envolvidos em sua produção e uso. E mesmo sendo vantajosos, a questão que se apresenta neste texto é refletir se realmente eles tem somente vantagens, como a publicidade tenta incutir, tendo provavelmente a intenção de valorizar o preço de venda dos mesmos. Ou seja, uma estratégica empresarial ou mercadológica / marqueteira.
A sustentabilidade é um conceito que vai além da simples substituição de uma tecnologia por outra. Envolve repensar todo o modelo de mobilidade urbana e as prioridades da sociedade.
Nesse contexto, o governo e a sociedade (já que o setor produtivo tende a pensar pela lógica do lucro) deveriam considerar alternativas mais abrangentes, como o investimento em transporte coletivo de qualidade, com preços acessíveis, horários adequados e uma rede que atenda efetivamente às necessidades da população.
Nas palavras do Geógrafo David Harvey, o interesse que o capital tem na construção da cidade é semelhante à lógica de uma empresa que visa ao lucro. Isso foi um aspecto importante no surgimento do capitalismo. E continua a ser. Cidades deveriam ser para as pessoas e não para o capital.
Cidades deveriam ser planejadas para facilitar o deslocamento a pé, de bicicleta e por meios alternativos integrados a um sistema de transporte público eficiente. A ideia de "cidade inteligente" para o cidadão, defendida por autores como David Harvey, sugere uma reconfiguração do espaço urbano que priorize as necessidades humanas sobre os interesses do comércio e a lógica de circulação pautada nos veículos.
A indústria automobilística, naturalmente, continuará a buscar alternativas que sejam lucrativas, independentemente de serem verdadeiramente sustentáveis ou não. Portanto, cabe aos formuladores de políticas públicas, aos urbanistas e à sociedade como um todo pressionar por soluções que realmente promovam o bem-estar coletivo e a preservação do meio ambiente.
Cabe também à sociedade utilizar da melhor maneira possível os recursos ao seu dispor, na medida de suas possibilidades, e principalmente não cair na armadilha de aceitar soluções que são meramente simbólicas, ou que são supervalorizadas.
Muitas vezes esta supervalorização é uma ação do capital para ampliar o valor de venda de seus produtos, usando a consciência ambiental, a sustentabilidade e outros atributos social ou ambientalmente corretos como agregador de valor. Porém isso é estratégico e muitas vezes simbólico.
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