A avaliação da qualidade do serviço público sob a ótica da iniciativa privada distorce a responsabilidade da classe política

A recorrente e rasa comparação entre os setores público e privado, muitas vezes, ignora as peculiaridades intrínsecas que distinguem estas duas esferas.

Enquanto as empresas privadas têm como objetivo principal a obtenção de lucro, as entidades públicas devem estar comprometidas com o atendimento das necessidades sociais, baseando-se no supra princípio da supremacia do interesse público. Este contraste afeta profundamente todas as relações institucionais. Um exemplo claro é a forma de contratação de pessoal, onde o concurso público é a ferramenta que visa garantir a isonomia e a justiça no acesso, evitando práticas como o apadrinhamento e as perseguições políticas. É o meio mais objetivo e transparente de acesso ao trabalho.

As empresas privadas operam em um ambiente onde tudo o que não é explicitamente proibido é permitido. Esta flexibilidade permite que elas inovem, arrisquem e até mesmo em alguns casos, cometam deslizes como a sonegação fiscal, buscando maximizar seus lucros. Dados do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário) apontam que a sonegação empresarial é maior que os orçamentos da Saúde e Educação somados.

Em contrapartida, as instituições públicas estão estritamente limitadas àquilo que a lei autoriza, seguindo procedimentos muitas vezes morosos, é verdade, mas necessários para garantir

a transparência, o controle social e a gestão participativa dos mais variados estratos sociais.

Isso repousa-se na ideia de que o gestor público não é o "dono" dos recursos que administra, mas sim um guardião do patrimônio coletivo (público), regido por outro importantíssimo supra princípio: a indisponibilidade da coisa pública. Este princípio, por sua vez, exige que todas as ações e decisões sejam pautadas pela legalidade, impessoalidade, formalidade, princípios que norteiam a administração pública e a distinguem do setor privado. Sem mencionar que moralidade e eficiência também estão no rol do artigo 37 da Carta Constitucional.


Dentro desse contexto, é comum a defesa da avaliação do serviço público pelo cidadão, sob um viés (distorcido) que tenta transpor a lógica de mercado para o setor público. Esta abordagem, embora tenha a simpatia de ampla parcela social pela sua atratividade e promessa de eficiência, não passa na realidade de peça publicitária, e pior,  pode gerar graves equívocos, isentando os verdadeiros responsáveis e atribuindo culpas acima do limite a outros.

O cidadão, que passa a ser pintado como "cliente", tende a avaliar o serviço público com base naquilo que recebe diretamente, ou seja, se sua demanda foi atendida, e se este atendimento foi de acordo com suas expectativas.

Entretanto, essa avaliação é muitas vezes subjetiva e relativa, pois o que está em questão não é simplesmente a satisfação do cidadão, mas o cumprimento de um conjunto de obrigações legais, dentro das possibilidades e limitações estruturais, materiais e orçamentárias do serviço público, obedecendo pressupostos de isonomia, de igualdade, de promoção de valores mais elevados que a satisfação individual (inclusive pelos famosos jeitinhos).

Quando um cidadão busca atendimento em um posto de saúde e se depara com a falta de médicos, medicamentos ou até mesmo com uma longa espera em uma sala desconfortável, a reação natural é atribuir a culpa ao servidor que o atendeu. Contudo, essa percepção é equivocada, pois tais deficiências geralmente são resultantes de problemas de gestão, alocação inadequada de recursos, falhas na aprovação e execução orçamentária, que são responsabilidades do alto escalão político, muitas vezes ocupado por indivíduos indicados politicamente. Assim, atribuir ao servidor a responsabilidade por uma falha que se origina na gestão estratégica é desconsiderar a complexidade do funcionamento da administração pública.

E isto não é culpa isolada do cidadão, mas sim uma falha na forma de mensurar a qualidade de algo que decorre de um processo amplo, integrado e interdependente, que se inicia tanto nas decisões políticas de alto escalão, quanto na aprovação de leis (às vezes oportunistas), que garantem ou prometem direitos, sem garantir os recursos. E desce as linhas hierárquicas até chegar ao "chão de fábrica".

Estudos e casos práticos demonstram que a aplicação da lógica de mercado ao setor público pode levar a interpretações equivocadas sobre a eficiência e a qualidade dos serviços públicos. 

Por exemplo, em países onde a privatização de serviços essenciais foi adotada, como o setor de saúde nos Estados Unidos, verificou-se que o foco no lucro pode comprometer a universalidade e a equidade no acesso aos serviços, gerando desigualdades e insatisfação generalizada. Em contrapartida, países com sistemas de saúde públicos robustos, como o Reino Unido, conseguem, mesmo com limitações orçamentárias, garantir um atendimento mais equitativo, ainda que o nível de satisfação possa variar conforme as expectativas dos usuários.

Além disso, o enfoque excessivo na avaliação individualizada do atendimento pode desviar a atenção da necessidade de participação política mais ativa por parte dos cidadãos. A verdadeira eficiência e qualidade do serviço público dependem, em grande medida, das decisões estratégicas tomadas pelo escalão político, que define as prioridades, aloca os recursos e estabelece as diretrizes que os servidores devem seguir. 

Além disso, na ânsia de ser bem avaliado, o servidor poderá ter impulsos para agir no sentido de ganhar a simpatia do cidadão-cliente, e em vez de seguir os ritos legais e impessoais, promover favorecimentos e simpatias, contrariando princípios como o da impessoalidade. 

Portanto, é mais relevante que o cidadão esteja atento ao processo eleitoral, escolha seus representantes com consciência e exerça uma fiscalização rigorosa sobre as ações desses gestores, do que simplesmente atribuir notas ao atendimento recebido, que muitas vezes reflete mais as limitações impostas ao servidor do que sua competência ou dedicação.

A equiparação entre o setor público e o privado ignora as diferenças fundamentais que os regem e, ao aplicar a lógica de mercado ao serviço público, corre-se o risco de atribuir responsabilidades equivocadas aos servidores e obscurecer a real importância do controle social sobre as decisões políticas. 

O papel do cidadão, portanto, vai além de avaliar o serviço público como um "cliente", mas envolve uma compreensão mais ampla das dinâmicas que influenciam a administração pública, destacando a necessidade de uma participação política mais consciente e ativa.

Por fim, o cidadão precisa entender que ele faz parte de um sistema amplo, chamado sociedade, onde todos têm os mesmos direitos. Onde as leis são pensadas para atender a coletividade e não o indivíduo. Onde os recursos são alocados de forma coerente. Uma gestão que foca no individualismo se torna clientelista, oportunista e transfere responsabilidades ou culpas. Quando o cidadão entende esta dinâmica, ignora discursos rasos ou enviesados e passa a exercer o controle social e cobrar os verdadeiros responsáveis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário