Nos últimos anos, a ascensão das inteligências artificiais (I.A.) na produção textual tem levantado debates profundos sobre a essência da escrita e o papel do autor no mundo contemporâneo. Já não se trata apenas de um avanço tecnológico, mas de uma transformação que desafia a própria noção de autoria e autenticidade.
Em meio a esse cenário, surge um questionamento inevitável: até que ponto um texto gerado por I.A. pode representar o pensamento, a emoção e a identidade de quem escreve, ou mais, retratar a concepção subjetiva sobre os fenômenos, sobretudo sociais e humanos ?
A escrita sempre foi mais do que um simples arranjo de palavras. Ela é uma forma de expressão, um meio pelo qual um autor se comunica com o mundo, organiza seu pensamento e deixa sua marca.
A história está repleta de escritores que transformaram a sociedade com suas ideias, não por causa (somente) da coerência e gramática impecável de seus textos, mas pelo modo como suas palavras refletiam suas experiências, angústias e visões de mundo. Com retratavam criticamente, às vezes de forma explícita, outras vezes, nas entrelinhas, as questões sociais, as injustiças, faziam resistência às opressões, expressavam seu amor, seus valores, seu eu. A inteligência artificial, por mais sofisticada que seja, carece desse elemento humano fundamental: a subjetividade.
É certo que a I.A. pode ser uma ferramenta útil, especialmente no jornalismo e no marketing, onde há a necessidade de produzir conteúdos rápidos e objetivos. Muitos veículos de comunicação já utilizam algoritmos para redigir notícias baseadas em dados brutos, otimizando tempo e eficiência. A questão do emprego é um assunto paralelo, pois há quem defenda que existe uma migração dos profissionais, outros, argumentam que há sim substituição e precarização. De qualquer forma, é uma realidade posta, está aí.
No entanto, quando falamos de textos literários, poéticos, e até acadêmicos, conforme a temática, a ausência de um pensamento genuinamente humano torna-se uma lacuna. A I.A. pode construir frases bem estruturadas, mas sua escrita carece da profundidade existencial. E por mais que ela redija algo com carga emocional, não passa de uma simulação baseada em padrões, pois apenas um ser humano pode imprimir essa característica em suas palavras.
Uma expressão da identidade criada por padrões ?
Outro ponto crucial é a autenticidade. Em um mundo saturado por conteúdos gerados automaticamente, distinguir o que é humano do que é artificial torna-se um desafio. Muitos leitores ainda são capazes de perceber nuances que denunciam a falta de alma em um texto criado por IA. A previsibilidade de certas construções, a ausência de um tom verdadeiramente pessoal, o exagero na adjetivação e a falta de espontaneidade são alguns dos sinais que podem indicar que um texto não foi escrito por uma pessoa. Ainda assim, a linha que separa esses dois mundos está cada vez mais tênue. E cada vez mais difícil de distinguir, especialmente quando não se conhece mais quem são os autores, suas características e estilos.
Por isso, vale a reflexão: quando um escritor delega à I.A. a tarefa de escrever por ele, não está apenas deixando de se abrir e se expressar ao leitor, mas enganando a si mesmo. Está abrindo mão da sua própria voz, substituindo sua essência por um amontoado de palavras bem organizadas, mas destituídas de identidade. A escrita não é apenas um meio de transmitir informações ou persuadir alguém. Para muitos, é um ato criativo, um exercício de pensamento e uma realização pessoal. Talvez já perdemos muito quando a forma manuscrita de escrever, deu lugar à datilografia e agora à digitação. A finalidade, muitas vezes associada à produtividade, suplantou a arte, pois não ficou restrita aos meios produtivos (a velha redação comercial), mas se espalhou em todos os campos da sociedade.
E é nesse ponto que a questão se torna ainda mais sensível. Para aqueles que consideram a escrita como parte de sua jornada intelectual e criativa, utilizar uma IA para produzir textos pode significar uma alienação de si mesmo. Palavras escolhidas por um algoritmo não carregam as marcas de quem as escreve, não possuem as marcas das experiências de vida, das referências subjetivas, do olhar único que cada autor imprime em suas obras. Se a escrita for reduzida apenas à sua funcionalidade técnica, perde-se uma de suas principais características: ser um reflexo autêntico da individualidade de quem escreve. Por isso, por mais técnico que seja o texto, por mais rígidas que fossem as regras gramaticais, a escrita também é arte, pois cada pessoa encontrará a sua maneira de se expressar, de revelar desde um fato objetivo e simples do cotidiano, até um sentimento, que por mais contraditório que pareça, inexplicável por palavras.
Vozes do verbo: um convite à escrita simples, cotidiana, porém, genuína.
Diante disso, a proliferação dos textos gerados por inteligência artificial nos coloca em um dilema cultural e filosófico. Em um mundo onde tudo tende à automação, o que nos resta de verdadeiramente humano? Se a literatura, a poesia, o ensaio e até a reflexão crítica forem delegados às máquinas, não estaremos abrindo mão de algo essencial? Não estaremos, de certa forma, nos tornando meros replicadores de conteúdos sem alma?
Mais do que nunca, é necessário valorizar a escrita humana não apenas por sua complexidade de significados ou argumentação, mas por ser uma extensão do pensamento e da criatividade do autor. A tecnologia pode ser uma aliada, mas nunca deve substituir a essência do que significa escrever: um ato de criação, um diálogo consigo mesmo e com o mundo, uma marca pessoal deixada nas páginas da história.
Nesse sentido, o livro Vozes do Verbo – Um Álbum de Opiniões sobre Tópicos Regionais surgiu como um convite à escrita genuína. Um de seus principais objetivos sempre foi incentivar a prática da escrita como meio de compartilhamento de experiências subjetivas, promovendo a reflexão e a valorização das histórias individuais.
Escrever é um ato que envolve emoção e pessoalidade, permitindo que cada autor deixe sua impressão única sobre o mundo. Mais do que simplesmente organizar palavras, trata-se de um processo criativo e significativo, que conecta as pessoas através de suas perspectivas, experiências e sentimentos.
Da mesma forma, é importante destacar que o blog Vozes do Verbo tem sido alimentado continuamente desde 2008, muito antes da popularização de inteligências artificiais, que só se tornaram amplamente acessíveis ao público a partir de 2022.
Durante mais de uma década, o blog consolidou-se como um espaço para a escrita autoral, onde cada texto reflete o olhar e a subjetividade do autor. Esse histórico reafirma a importância da escrita genuína e do compromisso com a autenticidade, com a emissão de opiniões e com a valorização da palavra como ferramenta de expressão individual, de crítica social e até de reivindicação, ou seja, do exercício ativo da política.
Os desafios na área de Educação
A chegada das inteligências artificiais à produção textual impõe desafios também à educação. Como lidar com um cenário em que alunos podem gerar redações e trabalhos acadêmicos em segundos, sem precisar desenvolver pensamento crítico ou habilidades de escrita?
A adaptação das instituições de ensino será inevitável, exigindo novas formas de avaliação que privilegiem a autoria e a criatividade genuína. Ensinar a importância da escrita como um processo de construção do pensamento e não apenas como um meio de obtenção de notas será essencial para evitar a alienação intelectual diante das facilidades tecnológicas.
E a literatura? Será que sucumbirá a essas facilidades tecnológicas, tornando-se apenas mais um produto automatizado? Ou será um refúgio para aqueles que ainda veem na escrita um ato de autenticidade e expressão individual? Em um mundo onde tudo tende à otimização e à impessoalidade, a literatura pode tornar-se um bastião da resistência, um espaço onde a palavra humana preserva seu valor inestimável.
O paradoxo é: para que as inteligência artificiais aprendam, elas precisam de produção humana, de conteúdos humanos. A autoaprendizagem com insumos criados pela própria I.A. é limitante e indesejável aos criadores desta tecnologia. Também, o aprendizado atual das máquinas é fruto do que elas assimilaram da própria produção humana que elas capturaram, sendo reproduzida, simulada, interpretada talvez. Mas em essência, só o ser humano cria em sentido estrito arte, cultura, literatura, expressão do sentimento e da observação.
O futuro dirá se a escrita literária permanecerá como uma forma de arte reconhecida e valorizada ou se será relegada a um nicho para aqueles que se recusam a abrir mão da criatividade autêntica.
No entanto, uma coisa é certa: enquanto houver pessoas dispostas a escrever com o coração e a mente, com suas experiências e emoções, a palavra humana continuará sendo um testemunho da nossa existência, um voz forte quando os ruídos do ambiente não nos deixam falar ou quando a timidez engasga nossa voz. O que seria da história, da humanidade, da sociedade, sem a escrita !
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