Manifestação religiosa e cultural da Recomendação das Almas

Tratar atualmente sobre as práticas ou ofícios da religiosidade popular é voltar um olhar sobre manifestações religiosas e culturais que clamam por resgate, que se constituem em um fator de resistência ao moderno, marcado pelo desencantamento e com o enfraquecimento do misticismo e do mágico que outrora povoavam a imaginação, davam suporte às tradições tipicamente rurais, mesclavam-se com a religiosidade popular, fortaleciam os laços de comunidade e envolviam aspectos da cultura como um todo.

Entre estas práticas, está a Recomendação das Almas, que também com este desencantamento da quaresma e com a mudança de paradigmas sociais deixa de ter as bases para sua realização e sentido. As mudanças sociais, demográficas, tecnológicas, culturais, acabam transformando os hábitos de vida, os valores, as crenças e as tradições.

Enfim, ao alterar o território propício a determinada prática, ou em outras palavras, ao alterar as bases materiais de determinada manifestação, ela tende a ser afetada, muitas vezes, enfraquecida ou esvaziada de sentido. Ela deixa de ser uma prática do cotidiano, tornando-se em alguns casos uma tradição cultural (restrita a um nicho, como lembrança saudosista ou comemorativa) ou às vezes, por falta de registro e transmissão, nem isso.

O desencantamento da quaresma citado pode ser entendido como o esquecimento, perda de sentido ou a falta de respeito, mesmo que este esteja interpretado de forma atrelada aos aspectos religiosos, com os princípios que norteavam estas manifestações.

A quaresma perdeu parte de seu sentido místico e folclórico, e com ela, todas as manifestações decorrentes desta visão de mundo perderam seu encantamento.

E a prática da Recomendação, embora não seja restrita à quaresma, tinha neste período religioso, marcado pela penitência, pelas orações, suas mais significativas manifestações.

E assim como a Recomendação foi sendo engolida pelo tempo e principalmente pelo contexto em que a quaresma passou a ter um significado mais “urbano (digamos assim), a interpretação popular de quaresma também sofreu alterações e perda de seus significados. Destacando que estou tratando da quaresma pela ótica das crenças, valores e visões de mundo populares, não da quaresma litúrgica e de sentido específico dado pela Igreja.

Isto nos faz refletir não apenas sobre a perda de parte da cultura popular, que se desintegra com a perda das características rurais das comunidades, mas também refletir sobre a perda ou ao menos mudança de valores inerentes à natureza humana: como o encantamento com o desconhecido (em época de Google, apesar das contradições informacionais, nada mais é desconhecido ou misterioso), a religiosidade (entendida em uma perspectiva ampla, que abrange os valores humanos e consequentemente sociais) e o respeito com as tradições.

Até mesmo a religiosidade popular passou a ser substituída por uma religiosa mais eclesiástica. A influência da igreja formal se capilarizou e com isso, suas regras e práticas oficiais substituíram a atuação comunitária ou popular. Basta lembrar que outrora, em muitas comunidades rurais, era comum as chamadas igrejinhas de santo, com imagens, um altar, onde as famílias residentes se reuniam para suas práticas e celebrações autônomas. Aqui podemos citar também práticas como batizados caseiros, benzimentos, etc.

Respeitar as tradições não deixa de ser, quase que intuitivamente, uma forma de preservar a cultura (como tratado no texto sobre o tradicionalismo gaúcho no Paraná).

Infelizmente, muitas das tradições se perdem pela falta de transmissão, pela perda de sentido com o contexto, pela falta de registros, especialmente quando há na realização especificidades e nuances regionais, e até pela falta de tempo, dado nosso cotidiano marcado pelo produtivismo.

Na internet, muitos textos tratam da Recomendação das Almas, porém, com muita divergência entre si, o que faz com o que os registros locais se tornem importantes e únicos, demonstrando que esta cultura ou tradição, assim como muitas outras, sofre as influências locais, o que as torna, exclusivas e ainda mais valiosas. Mas não se trata de uma mudança intencional, de uma necessidade de distinção ou exclusividade, mas sim de uma adaptação contextual ou resultado da transmissão oral.

Segundo Eufrásio e Rocha (2015), no Brasil há registros da Recomendação das Almas em diversas localidades, cada uma apresentando características peculiares, o que dificulta enquadrá-las dentro de uma definição precisa.

Embora existente em todo o Brasil, as principais referências se dão no Amazonas, São Paulo, Bahia, Goiás, Rondônia, Pará, Sergipe, Minas Gerais e no Paraná, trazendo consigo descrições que demonstram o quanto o ritual acontece de forma diferente, mas ao mesmo tempo, também com algumas semelhanças de lugar para lugar .

Segundo Paes (2007) esta manifestação se fundamenta na crença católica do purgatório e da eficácia da oração para encaminhar as almas dos falecidos ao descanso eterno e à salvação.

Tanto Paes (2007), quanto Eufrásio e Rocha (2015) dissertam que esta tradição advém das épocas medievais, congregando elementos mágico-pagãos com o catolicismo, ganhando nuances que permaneceram na religiosidade popular, dando, especialmente em uma época predominantemente de comunidades rurais, a possibilidade do povo participar das orações, independentemente da presença oficial da igreja. Seria decorrência de um catolicismo popular, diferente do catolicismo romano.

Paes (2007) relata também a influência africana, tanto que em muitas comunidades remanescentes de quilombos, a prática também ocorre.

Com suas diferenças, a prática também ocorre ou ocorria em Portugal, demonstrando que a manifestação que conhecemos ou que aqui ocorria, foi fruto de uma série de influências que deram origem a um elemento próprio, específico, com sentido diferente e contextualizado.

O site Jangada Brasil conta que, em 1515, na cidade de Coimbra, os encomendadores “no silêncio da noite, ao som de uma campainha, despertavam os cidadãos com terríveis vozes”.

Os Jesuítas também foram atores neste processo de formulação cultural. Ainda para Paes (2007) eles contribuíram com a introdução da manifestação no Brasil.

No município de Rebouças – PR, especialmente na comunidade do Barreiro (e Vila Ester), e nas comunidades Faxinalenses do Salto e do Marmeleiro, segundo relatos, ocorria esta espécie de manifestação popular, de caráter religioso, chamada de recomendação das almas. Particularmente, me coloco como fonte de algumas informações, pois no início dos anos de 1990, embora criança, tenho lembranças da realização desta prática no município de Rebouças.

Além disso, obtive um vídeo com um dos netos de um Capelão (o Senhor Silvério Rodrigues) quando parte do grupo se apresentou no Colégio Professor Júlio Cesar, por volta de meados dos anos de 1990. Nesta ocasião, toda leva de estudantes daquela época teve a oportunidade de ao menos presenciar uma demonstração da prática, que em geral, era restrita aos períodos noturnos da quaresma. Outra ocasião documentada em vídeo foi a realização de um terno dentro da Igreja do Divino Espírito Santo, na comunidade do Barreiro.

Figura 01- Apresentação da Recomendação no Colégio Júlio César, em Rebouças – Meados dos anos de 1990



Fonte: Print de vídeo disponibilizado por Edenilson Rodrigues


Como o presente texto não objetiva, de forma alguma, fazer uma reconstrução histórica da prática no Brasil, tampouco, chegar a sua gênese, se buscará então dar uma visão geral, simplificada e local (região de Rebouças –PR), do que se constitui a prática da Recomendação das Almas, também denominada de Lamentação, Encomendação, Recomenda, Terno das Almas, etc.

Mais especificamente, o texto tem por propósito chamar a atenção para o histórico local da prática, relembrar o impulso devocional que movia os participantes, destacando a necessidade do resgate ou ao menos de registro desta manifestação pela sua importância como elemento cultural próprio da região e de sua relação com o modo de vida de diversas comunidades, especialmente rurais.

Superando o caráter religioso, fatores como a vida rural que predominava na região, o respeito às tradições, repassadas de geração em geração, a religiosidade e crença popular do povo, a simplicidade e a fé, são elementos que tem significado também sob o ponto de vista cultural.

Essa manifestação, apesar de ser realizada em alguns velórios, ocorria principalmente nas quartas e sextas-feiras de quaresma, quando um grupo de pessoas saía pelas ruas cantando (ou rezando) algumas cantigas lúgubres, parando em frente ou adentrando em algumas casas ou capelas.

Comenta-se que o grupo de pessoas que rezava o terno visitava as casas que tinham crucifixos de madeiras pregados nos portões, orando e cantando em frente a estas residências, e o morador, com a casa totalmente fechada, após o término do rito os acolhia, servindo-lhes algum comestível ou bebida.

Meira (2017), confirma esta informação com relatos de moradores da comunidade de Faxinal dos Marmeleiros, em Rebouças. Segundo ele, o símbolo da cruz nas casas é um sinal que aquela família deseja receber o terno da quaresma, e somente nas casas que possuem a cruz no portão é que o grupo de recomendação reza, sendo ela enfeitada com fitas nos dias precedentes para demonstrar o aceite da família em receber o grupo.

Segundo alguns sites, como o Portal Factótum Cultural e diversos vídeos disponíveis no Youtube, comenta-se que são visitadas várias casas por noite (fala-se de cumprir 7 ou 9 estações ou pontos de reza, normalmente onde existem cruzes, o que pode incluir cemitérios e capelas), definidas pelo capelão (líder do grupo). A recomendação não possui horário definido para terminar, porém, caso dois grupos se encontrarem, devem ficar a noite toda rezando.

Destaca-se que o capelão é o responsável por coordenar o ofício e dirigir os demais rezadores, substituindo a figura de um religioso oficial.

De acordo com Meira (2017), o capelão possui papel central no grupo, ditando as normas e puxando os cantos e rezas. Cabe a ele coordenar e capitanear as rezas dos dias santos e dos terços, além de oficializar a encomenda dos corpos, sempre que ocorriam falecimentos. Junto a ele, tem pessoas que entoam diversos tipos de vozes: “tem voz de fora, segunda voz e as rezadeiras que acompanham as duas duplas, rezam e depois mais duas continuam, quem quiser acompanhar também pode participar”, relata uma entrevistada pelo pesquisador.

No caso da variante adotada em Rebouças, especificamente na Vila Ester, a qual presenciei, o instrumento que ajudava na condução do ofício era a matraca, utilizada pelo capelão como um sinal sonoro. São duas peças de madeira presas com uma tira de couro (ou outro material) que empunhadas pelo cabo, se chocam e produzem o som.


Figura 02 - Matraca


Observando vídeos na internet sobre outras variantes regionais da Recomendação (que vão desde o nome, como encomenda, recomenda, terno, lamentação, etc.), há diferenças nas vestes. Em algumas regiões do Brasil se cobre a cabeça ou se usa vestes brancas. No município de Rebouças, a prática era realizada com roupas do dia a dia. Também em algumas regiões do Brasil os recomendadores aparecem com instrumentos musicais.

O uso de instrumentos (uso de viola, violão e outros) e a entonação dos cantos em algumas destas práticas guardam certa semelhança com a Romaria ou Dança de São Gonçalo que também temos em nossa região, embora esta tenha tom festivo.

Vale destacar ou citar a Romaria de São Gonçalo porque assim como a Recomendação das Almas, é uma prática que faz parte do contexto rural, do catolicismo popular e das tradições religiosas e culturais que tem seu significado atingido pela urbanização e pelas mudanças nas relações sociais de comunidade.

Figura 03 - Romaria de São Gonçalo em Goes Artigas - Inácio Martins PR


Fonte: Print do video disponível em: https://www.youtube.com


De acordo com Lewitzki e Fróis (2021), a romaria também tem raízes no catolicismo popular. Embora existente em outras regiões do Brasil, no contexto paranaense, faz parte da identidade dos povos do universo rural e das comunidades tradicionais, como faxinalenses, benzedeiras e quilombolas.

Segundo Nascimento (2007), esta manifestação “folk-religiosa” de procedência medieval é um exemplo de resistência cultural, uma vez que, mesmo com o crescimento das cidades e racionalização do pensamento, ainda existe e persiste em certas regiões.

Mesmo se restringindo ao contexto paranaense, as formas de celebrar romaria apresentam variações que demonstram a diversidade da prática. No entanto, a principal característica é a dança, que consiste em fileiras organizadas por gênero (homens e mulheres), coordenadas por tocadores de violão, seguidas de cantadeiras e demais devotos, que dançam e cantam em frente ao altar, composto primeiramente pela imagem de São Gonçalo.

Feito este paralelo com a Romaria de São Gonçalo, no que tange à Recomendação das Almas, outras variantes regionais são marcadas pela participação ou não de crianças, de mulheres, no tipo de cantigas, embora todas geralmente lúgubres, etc.

Meira (2017) traz o relato da Dona Sebastiana Ferreira Ribeiro sobre o teor de um destes cantos ou rezas: “Deus te salve cruz bendita, cruz de Deus nosso senhor é uma cruz tão venturosa, dom de deus nos inspirou, acordai irmão devoto para fazer suas penitencias, rezamos um pai nosso junto com ave Maria. Pai nosso, Ave Maria, havemos de rezar. Daí é rezado a Virgem Dolorosa. Oh Virgem Dolorosa, que no pé da cruz está tudo lastimosa, bendito sejais, bendito sejais Senhora das Dores, ouvi nossos rogos, mãe dos pecadores. Acorde irmão devoto para fazer suas penitencias, acorda e fica de joelho rezando o Pai Nosso e Ave Maria. É rezado ao senhor Deus: Senhor Deus misericórdia, misericórdia Senhor, Senhor Deus por Maria Santíssima, misericórdia Senhor, repetindo várias vezes, Senhor Deus, Senhor Deus, Meu senhor, Misericórdia Senhor...”.

Até mesmo no aspecto religioso há variantes. Alguns estudos, como o apresentado por Nascimento(2007), consideram que se canta PARA as almas. Outros indicam que se reza em FAVOR das almas.

Esta distinção pode parecer meramente gramatical, mas tem um forte sentido semântico e religioso. Ao cantar para as almas, considera-se que as almas tem consciência, quiçá autonomia para ouvir e atender as preces ou para se beneficiar das orações. Ao cantar em favor das almas, considera-se que as almas estão passivas, dependentes da intercessão. A oração destina-se a uma entidade maior (Deus, Jesus, Maria – Nossa Senhora), que as beneficiará, perdoará e as encaminhará.

Assim, independente do aspecto religioso, a recomendação é uma manifestação que expressa a riqueza cultural das regiões e as especificidades de seu povo e que merece ser preservada e sobretudo valorizada.

Reacender esta tradição seria um resgate cultural de uma prática antiga, com raízes medievais, sincretizada com raízes africanas, talvez cabocla, que ao se misturar com o contexto brasileiro, deu origem a uma manifestação própria, com significados próprios.

Mas mesmo no Brasil, não se trata de uma prática única. Embora com princípios gerais, a recomendação é (era) rica em variantes regionais atreladas ao contexto e aos valores locais, ao espírito de comunidade, etc.

Reviver esta tradição seria também um resgate cultural e uma forma de resistência, porque sendo marcada por um contexto rural, com o êxodo de muitas famílias para a zona urbana, em busca de melhores condições de vida, os membros mais antigos do grupo familiar conseguiram manter, mesmo neste ambiente urbano, com sua dinâmica própria, esta manifestação, verificando, porém, que os sucessores, em geral, não deram continuidade ao ofício.

Ressalta-se que no grupo existente em Rebouças, por volta dos anos de 1990 (quando ainda ocorria a prática), a maioria dos integrantes eram pessoas de idade elevada, e com o falecimento destes atores, não houve continuidade da tradição.

Pesa ainda o fato de que, por ser uma tradição tipicamente rural, repassada de forma oral, em uma época de pouco acesso aos meios de documentação, exercida por pessoas humildes, às vezes iletradas, e com diferenças regionais, não se tem muitos registros sobre o assunto em nível local. Predominam os relatos. Videos com a prática são raros. Destaco o citado por mim no início do texto, porém, desta apresentação para cá, se passaram em torno de 30 anos. Há talvez ainda resquícios das cenas na memória de poucos.

Assim, as mudanças sociais, econômicas, a urbanização, a institucionalização da fé, o desencantamento da quaresma, a vida noturna e suas luzes, toda essa dinâmica moderna enfraqueceu a prática e retirou o caráter misterioso da Recomendação das Almas.

José Carlos Pereira (2005), em seu livro “O Encantamento da Sexta-feira Santa – manifestações do catolicismo no folclore brasileiro” retrata muito bem essa dinâmica de desencantamento com as tradições místico-religiosas e da desintegração do rural, da magia que residia no imaginário popular, repleto de elementos folclóricos.

Isso demonstra que as pessoas do interior, sobretudo humildes e “simples” são detentoras de conhecimentos e culturas que muitas vezes são ignoradas pelo restante da população e que acabam se perdendo. Uma cultura rica, com significados, uma forma de saber, que se perde se não houver iniciativas de resgate.

Não se trata de fechar hermeticamente estas práticas, colocando-as livres das influências modernas, mas de resgatá-las e preservá-las como parte do patrimônio cultural.

A origem da palavra patrimônio, para Horta (1999) é do latim, e é derivada de pater (pai). O patrimônio cultural constitui a riqueza e a herança de um povo, é o conjunto de bens culturais, é um tesouro à sociedade, que revela a cultura recebida das gerações anteriores, o que mantém estreita relação com o conceito de tradição.

De acordo com Lima (2013), as tradições podem ser mantidas, mesmo que reconfiguradas. Inclusive, muitas das práticas podem ser interpretadas para além de seu significado religioso ou histórico, mas sob o prisma da resistência cultural e da formação de espaços de lazer, de sociabilidade, de encontros. As festas juninas, o Carnaval, o rodeio crioulo, são exemplos de eventos que têm um fundamento histórico, religioso, cultural, econômico, de condições de vida de determinada época, e hoje são eventos populares e de lazer, especialmente para aqueles que assistem ou participam em tom mais espontâneo.

Assim podemos afirmar que o ritual da Recomendação das Almas (assim como a Romaria de São Gonçalo) apresenta-se como espaço para espiritualidade, mas também como espaço para o lazer, para estabelecer novos laços de sociabilidade e solidariedade ou fortalecer os já existentes, reforço dos valores hierárquicos e até formas de ostentação.

Ainda para Lima (2013), o lazer é o espaço da liberdade, no qual as pessoas podem demonstrar seus sentimentos, desenvolver sociabilidades e solidariedade, expressar suas emoções, brincar, manifestando seus costumes coletivamente em um mesmo espaço.

Enfim, resgatar e documentar esta prática, especialmente aquela especificamente realizada em Rebouças, poderia ser uma empreitada não apenas de historiadores ou de estudos acadêmicos, com a finalidade de registro histórico, mas se poderia ir além.

Ao invés de apenas documentar um fato que ocorria, seria possível envolver grupos sociais organizados, sobretudo aqueles relacionados com os aspectos culturais, com as ruralidades, com as práticas sociais e solidárias e reviver estas formas de tradição, tanto sob o aspecto da religiosidade, quanto sob o aspecto cultural, histórico, mas também de lazer, de convivência, de solidariedade, de resistência, de identidade de grupo.

Secretarias de Cultura (embora seja um tema transdisciplinar), grupos de terceira-idade, movimentos de povos tradicionais, benzedeira, etc. poderiam ser envolvidos no resgate.



REFERÊNCIAS


BRASIL. Lei nº 1401/2010. Dispõe sobre o processo de reconhecimento dos ofícios tradicionais de saúde popular em suas distintas modalidades e regulamenta o livre acesso à coleta de plantas medicinais nativas no município de Rebouças – PR. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/pr/r/reboucas/

BRASIL. Lei nº 2042/2017 Cria o "Parque Ambiental São João Maria", na área urbana que específica, e dá outras providências. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/pr/r/reboucas/lei-ordinaria/2017/205/2042/lei-ordinaria-n-2042-2017-cria-o-parque-ambiental-sao-joao-maria-na-area-urbana-que-especifica-e-da-outras-providencias

EUFRÁSIO, Vinícius. A reza cantada do ritual de Encomendação das Almas em povoados rurais da cidade de Cláudio/MG. XXVIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Manaus – 2018. Disponível em: https://anppom.org.br/an ais/anaiscongresso_anppom_2018/5463/public/5463-18188-1-PB.pdf

EUFRÁSIO, Vinícius; ROCHA, Edite.. O ritual de Encomendação das Almas: A produção bibliográfica e audiovisual digital no Brasil e em Portugal. Universidade Federal de Minas Gerais. Nas nuvens.... 1º Congresso Internacional em Música. Minas Gerais: 2015. Disponível em: https://musica.ufmg.br/nasnuvens/wp-content/uploads/2020/11/2015-O-ritual-de-Encomendacao-das-Almas-A-producao-bibliografica-e-audi ovisual-digital-no-Brasil-e-em-Portugal.pdf

LEWITZKI, Taisa; FRÓIS, Douglas. Romaria de São Gonçalo: Imagens de Fé e Festa no Interior do Paraná. Revista Antropológica Vivência. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2021. Disponível em: https://periodicos.ufrn.b r/vivencia/article/view/27616/15190

LIMA, Liliane de Jesus Oliveira. Festas e festejos para além da mistura: encontros, desencontros, sociabilidade, solidariedade e resistência. XXVII Nacional de História. Associação Nacional de História ANPUH. Rio Grande do Norte. 2013. Disponível em: https://www.snh2013.anp uh.org/resources/anais/27/1364950082_ARQUIVO_PARAALEMDAMISTURA-ANPUH.pdf

Museu Paranaense. Benzedeiras do Paraná: mulheres de fé. Curitiba: 2020. Disponível em: https://www.prcultura.pr.gov.br/Pagina/mesa-redonda-benzedeir as-do-parana-mulheres-de-fe

NASCIMENTO, Gênio. Encomendação das Almas: resistência cultural em São Roque de Minas. XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos, SP: 2007. Disponível em: http://www.interc om.org.br/papers/nacio nais/2007/resumos/R0003-1.pdf

PAES, Gabriela Segarra Martins. A recomendação das almas na comunidade remanescente de quilombo de Pedro Cubas. Universidade de São Paulo. 2007. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/8/8138/tde-01122009-160957/publico/GABRIELA_SEGAR RA_MARTINS.pdf

ROSA, Renan Rodrigues. Recomendação das Almas: Cantos de libertação. 2022. Disponível em: https://factotumcultural.com.br/2022/02 /28/recomendacao-das-almas-cantos-de-libertacao.

SILVA, José Graziano. Velhos e novos mitos do rural brasileiro. Estudos avançados. n.15. v.43. São Paulo: 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142001000300005&sc ript=sci_artte xt


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Recomendação das Almas: um olhar sobre essa manifestação religiosa e cultural que clama por resgate em tempos de desencantamento da quaresma.


TEXTO ANTIGO (ANTES DA REVISÃO PARA O LIVRO)




Fonte: google imagens

O desencantamento da quaresma, entendido como o esquecimento ou a falta de respeito, mesmo que este esteja interpretado de forma atrelada aos aspectos religiosos, nos faz refletir não apenas sobre a perda de parte da cultura popular, que se desintegra com a perda das características rurais das cidades, mas da cultura religiosa e de valores inerentes à natureza humana: como o encantamento com o desconhecido, a religiosidade (entendida em uma perspectiva ampla, que abrange os valores humanos e consequentemente sociais) e o respeito com as tradições. E respeitar as tradições não deixa de ser, quase que intuitivamente, uma forma de preservar a cultura.

No município de Rebouças – PR, especialmente na comunidade do Barreiro, e nas comunidades Faxinalenses do Salto e do Marmeleiro, ocorria uma espécie de manifestação popular, de caráter religioso, chamada de recomendação das almas.
Segundo o site embu.art.br, esta manifestação se fundamenta na crença católica do purgatório e da eficácia da oração para encaminhar as almas dos falecidos ao descanso eterno e à salvação. Daí a tradição que das épocas medievais nos ficou, de rezar e pedir pelas almas do purgatório, ritual ainda subsistente institucionalmente na Igreja Católica. O povo, porém, desejando participar dessas orações, independentemente da igreja, criou o fato folclórico – a Recomendação de Almas.

O site Jangada Brasil conta que, em 1515, na cidade de Coimbra, os encomendadores “no silêncio da noite, ao som de uma campainha, despertavam os cidadãos com terríveis vozes”. Além da antiga origem ou influência católica, especialmente portuguesa, outros estudos apontam a influência africana, quando no período escravocrata e posteriormente, se mantendo em algumas comunidades quilombolas, a Recomendação das almas era realizada.Segundo Paes e Souza (2007) com a decadência da mineração, no final do século XVIII, muitos escravizados foram abandonados ou alforriados, transformando-se em camponeses, autônomos do ponto de vista econômico e religioso. O poder religioso era independente do clero oficial e concentrava-se nas mãos de leigos. Dessa forma, desenvolveu-se um catolicismo popular marcadamente diferente do catolicismo romano e repleto de influências africanas, e a Recomendação das Almas era uma de suas práticas.

Os jesuítas também foram atores nesse processo de formulação cultural. Ainda para Paes e Souza (2007) eles contribuíram com a introdução da manifestação no Brasil. Como o presente texto não objetiva, de forma alguma, fazer uma reconstrução histórica da prática no Brasil, tampouco, chegar a sua gênese, se buscará então dar uma visão geral, simplificada e local (região de Rebouças –PR), do que se constitui a prática da Recomendação das Almas, também denominada de Lamentação, Encomendação, Recomenda; terno [das almas], etc. e especialmente, relembrar do caráter devocional que movia os participantes para essa prática, mas sobretudo, destacando a necessidade do resgate dessa prática pela sua importância enquanto manifestação cultural e de sua relação com o modo de vida de diversas comunidades, especialmente rurais.

Superando o caráter religioso, fatores como a vida rural que predominava na região, o respeito às tradições, repassadas de geração em geração, a religiosidade do povo, a simplicidade e a fé, são elementos que tem significado também sob o ponto de vista cultural.

Essa manifestação, apesar de ser realizada em alguns velórios, ocorria principalmente nas quartas e sextas-feiras de quaresma, quando um grupo de pessoas saia pelas ruas cantando (ou rezando) algumas cantigas lúgubres, chegando em algumas casas. Comenta-se que o grupo de pessoas visitava as casas que tem crucifixos de madeiras pregados nos portões, orando e cantando em frente às residências, e o morador, com a casa totalmente fechada, após o término do rito os acolhe. São visitadas várias casas por noite (fala-se de cumprir as 7 estações), o que inclui cemitérios e capelas, definidas pelo capelão (líder do grupo).

Destaca-se que o capelão é o responsável por coordenador o ofício e dirigir os demais rezadores, substituindo a figura de um religioso oficial.

Entre outras variantes regionais, que vão desde o nome (encomenda, recomenda, terno, etc.), até as vestes (cabeça coberta ou não), em algumas regiões os recomendadores usam instrumentos musicais. Entretanto, o mais comum, citado em quase todas as fontes e verificado in loco na região tomada como exemplo, está a matraca, utilizada pelo capelão para marcar o início do terno e pedir as orações. Outras variantes regionais está na participação ou não de crianças, de mulheres, no tipo de cantigas, todas geralmente lúgubres, etc.


Um artigo que demonstra algumas das variações regionais da procissão pode ser encontrado no link a seguir. Trata-se do texto Encomendação das Almas: resistência cultural em São Roque de Minas, o que pelo próprio título indica que enfatiza a variante da prática realizada na região, mas sem deixar de traçar aspectos gerais.

Até mesmo no aspecto religioso há variante. Alguns estudos, como o acima citado, consideram que se canta PARA as almas. Outros indicam que se reza em FAVOR das almas. O vídeo abaixo traz um exemplo desta manifestação realizada na Comunidade Quilombola Paiol de Telhas, em Reserva do Iguaçu - PR.



Assim, independente do aspecto religioso, é uma manifestação cultural, que a expressa riqueza cultural das regiões e as especificidades de seu povo e que merece ser preservada e sobretudo valorizada, pois seria um resgate cultural de uma tradição antiga, pois a maioria dos integrantes do grupo eram pessoas de idade elevada e as mudanças sociais, econômicas, a urbanização, a institucionalização da fé, o desencantamento da quaresma, como cita José Carlos Ferreira (no livro em link Encantamento da Sexta-Feira Santa - manifestações do catolicismo no folclore brasileiro, que merece ser lido), a vida noturna, a urbanização e suas luzes, enfraqueceram a prática e retiraram o caráter misterioso da prática.

Isso demonstra que as pessoas do interior, sobretudo humildes e “simples” são detentoras de conhecimentos e culturas que muitas vezes são ignoradas pelo restante da população e que acabam se perdendo.
Não se trata de fechar hermeticamente estas práticas, colocando-as livres das influências modernas, mas de resgatá-las e preservá-las com parte do patrimônio cultural.

O blog Cultura digital relembra que podemos afirmar que o ritual da Recomendação das Almas apresenta-se como espaço para espiritualidade, mas também como espaço para o lazer, para estabelecer novos laços de sociabilidade e solidariedade ou fortalecer os já existentes, reforço dos valores hierárquicos e de gênero e até formas de ostentação.

Enfim, é uma das muitas práticas que os grupos sociais organizados, sobretudo aqueles relacionados com os aspectos culturais, com as ruralidades, com as práticas sociais e solidárias, secretarias de cultura, grupos de terceira-idade, e até mesmo religiosos, poderiam se envolver e resgatar.


1º ENCONTRO BRASILEIRO DE RECOMENDAÇÃO DAS ALMAS - CAMPO BELO DO SUL - SC.




ENTREVISTA: RECOMENDAÇÃO DAS ALMAS - PARTE 1



Fontes bibliográficas e materiais adicionais sobre o assunto estão disponíveis em:

SOUZA, Marina de Mello e; PAES, Gabriela Segarra Martins. A 'recomendação das almas' na comunidade remanescente de Quilombo de Pedro Cubas. São Paulo: 2007. USP. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-01122009-160957/pt-br.php

Lenda da recomendação das Almas.

Revista Jangada Brasil: a cara e a alma brasileiras.



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