As relações sociais geram e
revelam alguns interessantes movimentos dialéticos, que embora não determinem,
influenciam no comportamento individual e consequentemente social, alterando
hábitos, costumes, valores e visões de mundo.
Entretanto, nem sempre tais
movimentos se originam de forma espontânea no tecido social, mas são induzidos,
via de regra, por aqueles que têm as condições materiais para impor, deliberada
ou sutilmente, suas ideologias, ou seja, por aqueles que detêm os aparatos
ideológicos, que nada mais é do que a classe dominante.
Um destes movimentos dialéticos
que exemplifica a contraditória mudança social é o uso do veículo, marca
registrada da sociedade industrial. Se retrocedermos, por exemplo, na não tão
distante década de 1980, a posse de um veículo automotor era privilégio (de
poucos). Esta exclusividade alimentava o desejo e a esperança de grande parte
dos trabalhadores em um dia adquirir o próprio carro e com ele ter a
possibilidade de desfrutar de todos os benefícios, como viajar e aproveitar a
vida, desfrutar com a família, ter um meio de transporte para as
emergências, etc. Demonstrava ainda o quão bem sucedido eram aqueles que possuíam tal bem, ao mesmo tempo em que aviltava o ato de andar a pé, de bicicleta. Enfim, o feliz condutor de um automóvel ao passar em um ponto de ônibus, onde dezenas de pessoas aguardavam a condução se dava conta da comodidade seu dispor, do seu status, e causava, por que não, até uma certa inveja naqueles que não tinham tal sonho de consumo realizado.
emergências, etc. Demonstrava ainda o quão bem sucedido eram aqueles que possuíam tal bem, ao mesmo tempo em que aviltava o ato de andar a pé, de bicicleta. Enfim, o feliz condutor de um automóvel ao passar em um ponto de ônibus, onde dezenas de pessoas aguardavam a condução se dava conta da comodidade seu dispor, do seu status, e causava, por que não, até uma certa inveja naqueles que não tinham tal sonho de consumo realizado.
Esse meio de transporte
transformado em ícone, em símbolo de status, de poder, de comodidade, de luxo, de
segurança, de conforto, gerava mais do que um desejo psicológico naqueles que
não o possuíam. Motivava seus esforços, criava uma nova forma de pensar, de
olhar para os bens de consumo. Afinal, a indústria não vende bens materiais.
Vende sensações, estados de espírito.
E essa mesma indústria, como
todas as demais, inseridas em um contexto capitalista, cuja lógica é o lucro e
que exige a produção, o descarte e o desperdício para alimentar o consumo em um
ciclo contínuo, promoveram as condições para que o tal bem se popularizasse.
Entretanto, o sistema incentiva e
depende da produção e do consumo ilimitado, mas não tem domínio sobre os
recursos naturais que são limitados e sobre os impactos da exploração
desenfreada das possibilidades naturais, nem sobre o espaço.
O que no início era comodidade,
agilidade, segurança, luxo e privilégio (embora para as classes mais abastadas
o luxo continue, pois os bens oferecidos às camadas abastadas são sempre
superiores em relação aos bens populares) se transformou em problema. Além dos
problemas ambientais, problemas estruturais floresceram. Precariedade das vias,
congestionamentos, pedágios, rodízios, estacionamentos pagos, acidentes
constantes, invalidando ou matando centenas de pessoas diariamente. Em muitos
países, já há restrições diversas quanto a circulação dos automóveis visando
reduzir diversos problemas dela decorrentes. Enfim, o veículo, outrora solução,
não atende mais a própria exigência cada vez maior do sistema por espaço e por
tempo, já que são recursos que não podem ser desperdiçados e sua expansão chega
ao limite.
Eis então que surge uma mudança
dialética na sociedade. A idolatria do automóvel podemos ter por pressuposto
que foi ideologicamente construída para atender a diversos interesses e
necessidades. E agora a valorização das alternativas ao transporte automotivo é
uma movimento autônomo ?
Hoje, os meios de comunicação,
entre outros agentes formados de opinião, incentivam o uso de outros meios de
transporte. Fala-se no transporte coletivo, embora todos saibam que tal solução
demanda investimentos públicos, de incremente na qualidade e de preços
atrativos, além de garantir o bem estar e a segurança (não somente contra
acidentes, mas contra furtos, assaltos) dos passageiros. Além de que, precisa
enfrentar a mentalidade já cristalizada na sociedade, da autonomia e
independência que o automóvel ou motocicleta individual traz em termos de
conforto, comodidade e flexibilidade de horários.
Outros apontam formas
alternativas de transporte, como a bicicleta (embora não haja respeito e nem
infraestrutura para garantir a segurança do ciclista no caos urbano). E aqui
surge o papel da ideologia. Hoje, graças a facilidade de locomoção
proporcionada pelos veículos e pela redução da penosidade no trabalho
decorrente da tecnologia (que também desemprega), as pessoas estão sedentárias.
Estudos comprovam que o
sedentarismo mata mais que a obesidade e que é a causa de inúmeros problemas físicos
e psicossomáticos. É preciso manter a população saudável. A expectativa de vida
aumentou e é preciso ampliar a qualidade do envelhecimento. As crianças
precisam ser estimuladas a se movimentar desde cedo. . Então é preciso se
locomover. Esse contexto junto com a questão ambiental gera o material mais que
necessário para uma série de propagandas e incentivos para que as pessoas
abandonem os veículos (aquele objeto de desejo e de realização que a indústria
através de diferentes estratégias estimula todos a adquirirem...)
Mas a contradição sempre surge, e
nos ajuda a entender o que é discurso, o que é prática e o que há por traz de
toda relação social.
Formas alternativas ao uso do automóvel, por
exemplo, não vem necessariamente das camadas sociais populares, de quem
trabalha o dia todo, geralmente longe de casa, que tem filhos dependentes de
creche, com horários determinados, etc. Mas de pessoas que dado o padrão de
vida, conseguem compatibilizar seus horários e jornadas de trabalho com as
atividades pessoais. Inclui nesse segmento muitos autônomos, profissionais
liberais e outros que dispõem de horários flexíveis e que podem fazer dessa
nova mudança mais uma forma de lazer e de melhorar a qualidade de vida, e não o
meio de transporte diário para a subsistência, com horários apertados, e em cidades ou cruzando locais que a topografia urbana ou as condições estruturais não facilitam, como por exemplo, para o uso da bicicleta. E confirmando a
contradição, mesmo nas academias, onde as pessoas passam longos minutos andando
em esteiras para se exercitarem, os estacionamentos estão repletos de carros... Interessante que nos anos de 1980, centenas de funcionários deixavam suas bicicletas nos bicicletários das empresas. Hoje, faltam vagas de estacionamento...
É óbvio que é necessária a
conscientização sobre os problemas ambientais e sociais, que é vital prezar
pela qualidade de vida, mas é necessário também conscientização sobre a que
propósitos determinados movimentos atendem, se eles são coerentes com o padrão
de vida de todos. É preciso refletir que, querendo ou não, vivemos em uma
sociedade de classes, e aquilo que interessa a alguns, nem sempre atende aos
anseios da maioria.
E mais que isso, não se pode usar
apenas da conscientização para solucionar problemas estruturais decorrentes da
falta de planejamento, da falta de investimentos públicos ou de investimentos
mal realizados, bem como, para solucionar os problemas decorrentes da própria
lógica do sistema de produção capitalista.
Não seria interessante um
incentivo igual ou maior ao dado pela melhoria da qualidade de vida (redução do
uso do carro, alimentação saudável, prática esportiva, etc.) para a melhoria do
transporte público ?
Não seria interessante que a
prática esportiva ou lazer ficassem para momentos oportunos e não
transformá-las em uma forma utilitarista de locomoção que apesar de política e
ecologicamente correta, nem sempre é praticável pela maioria ? Ou simplesmente
é melhor jogar a solução de um problema conjuntural para a responsabilidade do
povo ? Será o problema está no uso do veículo, porque o sistema estimula sua produção e aquisição ?
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