Direitos e deveres, jeitinho e individualismo.

A sociedade tem uma série de direitos material e formalmente garantidos, seja pela atuação do Estado quanto pelas leis que obrigam até mesmo aos particulares a oferecer certos benefícios à população.

Entre os direitos assegurados pelo Estado, podemos citar a educação, a saúde, a segurança pública, a assistência social, entre tantos outros citados na Constituição. Embora nem todos estejam disponíveis quantitativa ou qualitativamente de forma universal, dado o limite imposto pelo princípio do “financeiramente possível”, a população enfatiza que paga impostos e que, portanto, tudo lhes é devido conforme suas conveniências individuais.

Às vezes, as exigências em voga no discurso social são muito maiores do que aquelas que o cidadão cobra quando paga, e caro, por um serviço na iniciativa privada e se conforma com um atendimento de qualidade duvidosa. Isto comprova que reclamar do que é público é muito mais um traço da cultura social, uma espécie de mania, do que resultado de uma análise imparcial e objetiva do serviço oferecido. Reclama-se porque o cidadão subentende que tem direitos: de ser tratado de forma especial, conforme suas conveniências ; reclama porque tem o direito de reclamar !

Há, porém, que se destacar que nesta relação comparativa entre público e privado, antes de qualquer análise, é preciso entender que estas duas dimensões são
essencialmente diferentes, com objetivos diferentes. Exemplificando, o serviço privado não tem a obrigação de atender, independente dos limites estruturais e materiais, toda coletividade, tal como se exige dos serviços públicos, normalmente universais. Basta observar o fluxo de pacientes em uma unidade de saúde. A estrutura e seus servidores precisam atender tanto um cidadão com uma simples cólica quanto um acidentado. Precisam atendê-los havendo duas pessoas na fila ou havendo 100, afinal, todos, teoricamente, têm o mesmo direito. Embora, e natural que seja assim, cada pessoa ache que seu problema é prioritário.

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          Ocorre que a lógica é implacável. Para haver direitos de um lado, é preciso que haja obrigações de outro. A sociedade tem direito à escola, mas tem o dever de pagar tributos, de apresentar a correta documentação de matrícula, etc. Porém, o olhar da sociedade foca nos direitos, e pior, sob a perspectiva individualista. O cidadão tem direito à matrícula em uma escola pública, mas reclama em apresentar a documentação obrigatória em lei. Exige a escola X e não aquela que a lei determina (mais próxima de sua residência), exige o turno, a turma, a professora, até a posição na fila das carteiras. É um direito ? Em alguns casos, pode ser, em outros, não.

Tantos direitos, ao mesmo tempo em que as obrigações são interpretadas como opressão do Estado contra as liberdades individuais têm contribuído para um contexto de conflito de direitos. Isto porque se as pessoas tivessem bom senso, não precisaríamos de tantas leis. Andar em velocidade compatível com a segurança do trânsito, não ultrapassar em local indevido, respeitar a fila, são coisas que não precisavam estar na lei se todos tivessem educação e bom senso. Pegamos o exemplo da fila da saúde: quem tem direito de ser atendido primeiro ?

Literalmente, o artigo 196 da Constituição Federal Estabelece: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido o acesso universal e igualitário. Porém, apesar da expressão “universal e igualitário”, o artigo 3º do Estatuto do Idoso assegura que é obrigação do Poder Público assegurar aos idosos, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à saúde.

Ora, se é universal e igualitário, como os idosos têm a prioridade ? Talvez não precisássemos de leis para isso se a sociedade não focasse em seus direitos de forma egocêntrica  e individualista, talvez fosse apenas uma questão de ética e de humanidade que o idoso, dada sua fragilidade, fosse atendido com preferência. Mas sem exaurir o exemplo, vem ainda o Estatuto da criança e do adolescente e diz em seu artigo 4º que é dever do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à saúde do menor.

Isso nos leva a refletir: diante de tantas pessoas com o mesmo direito, quem tem mais direito? Esta resposta poderia ser dada com base no respeito, na empatia, nos valores culturais, humanos, talvez até religiosos. A ética, a humanidade, o bom senso, o respeito aos outros, poderiam prevalecer, evitando-se tantas leis conflitantes, tantos direitos.

https://misericordia.com.
br/jeitinho-brasileiro-e-o-
mesmo-que-dizer-
desonestidade/
E no meio de tantos direitos, o que prevalece, no entanto, é o EU. Eu busco meus direitos, pouco me importando com o direito dos outros. Os valores deveriam ser um dever! Mas já que isto não está na lei, deixamos para lá. Afinal, mesmo quando está na lei, deixamos para lá o que não  nos convém (burlamos leis de trânsito, valorizamos como cultura nacional o jeitinho brasileiro, a malandragem, etc.).

Vendo m programa de TV, admirei-me sobre a dúvida de uma telespectadora. Ela, separada do pai de seu filho, recebia a justa pensão do ex-marido. Casada com outro posteriormente, a dúvida era se ela teria o direito de exigir a pensão do padrasto também. Outro queria ser ressarcido porque tropeçou em uma pedra no meio-fio. Outro processa porque ficou alguns minutos a mais na fila. Enfim, tantos direitos na lei (e no imaginário das pessoas) são inexeqüíveis na prática, levando a uma judicialização de conflitos que poderiam ser evitados com bom senso, tolerância, empatia e generosidade.

EaD SEST SENAT
Na área jurídica, quando há conflito de direitos, a justiça, diante do caso concreto, se posiciona e reequilibra a situação. Mas a realidade extrapola os casos de conflitos de direitos juridicamente determinados. Talvez o contexto social e econômico, a cultura típica do capitalismo, que incentiva a competitividade, a diferenciação individual, a obtenção de vantagens como atributo, tenha também um peso determinante.

Talvez nosso contexto socioeconômico esteja incentivando as pessoas a somente obter vantagens em tudo e sobre todos. A lógica do capitalismo é lucrar, é usufruir. Ou quem sabe, e é triste admitir esta hipótese, o ser humano seja individualista de forma inata. Talvez um resquício da época selvagem onde ser competitivo era o modo de preservar a vida. Felizmente, os tempos são outros e o grau de civilização nos permite superar este comportamento, se existente.

prisional
            Hoje, todos exigem, cobram, reivindicam e usufruem de seus direitos. Muitos exigem até mesmo o que não lhes é de direito. Às vezes por desconhecimento, às vezes porque exigir e obter se tornou a lógica da vida em sociedade. Depois reclamamos que bandidos ficam pouco tempo na cadeia, que corruptos não vão presos. Tudo isto são folhas da mesma árvore repleta de direitos e sem os  frutos dos deveres.

E a situação piora porque o cidadão exige além de seus direitos. Ele quer para si o famoso jeitinho. Para o outro, os rigores da lei, da ética, da honestidade, os deveres. Isso denota que a sociedade está cultivando valores que não são sustentáveis. Prevalece no meio social o egocentrismo, onde somente o EU é importante.

Hoje, todos os comportamentos e ações nas relações sociais, seja no trabalho, na escola, na família, na igreja, no clube, visam a atender os MEUS interesses, as minhas necessidades, sejam elas quais forem: econômicas, destaque social, status, etc. Para mim, eu transformo tudo que posso em direito, em vantagem e cobro de forma veemente seu cumprimento. Para o outro, tudo é privilégio. E ai do outro se não cumprir os seus deveres de modo que me favoreça ! Ocorre que no meio de tantos direitos, começamos a perceber uma proliferação de conflitos. Afina, para mim ter tantos direitos, preciso anular os direitos alheios.

Por alguma razão, esta lógica de exigir e reclamar se acentua no serviço público. Queremos tudo, com eficiência e qualidade inconteste porque pagamos tributos. Criticamos o Estado porque ele não atende como queremos uma multidão de pessoas no pequeno posto de saúde do bairro. Queremos regras rígidas, controles que dificultem a corrupção, o jeitinho e a malandragem (dos outros), problemas estes naturalizados na sociedade, mas reclamos da burocracia que nos impede de usar estes expedientes. Reclamamos até de apresentar uma cópia de documentos quando solicitado. Porém, no serviço privado, que atende somente quem pode pagar, que oferece um serviço compatível com sua estrutura, pagamos caro, às vezes somos atendidos com atraso, mal atendidos, e simplesmente não reclamamos.

Não dizemos que a iniciativa privada não funciona, apesar de n casos de adulteração de produtos, de prazos de validade expirados, de qualidade duvidosa, etc. Não reclamos quando o empresário sonega impostos, quando não exige documentos para garantir a igualdade de direitos, e quando exige, corremos para fornecer. Alguém já foi ao banco sacar dinheiro sem o RG ou sem o cartão ? Melhor dizendo, alguém já foi ao banco após às 15 horas ? Pois é. No setor privado, os clientes, mesmo pagando, respeitam mais as regras, os horários, e reclamam menos, mesmo quando o atendimento não é adequado.

O Brasil está no topo do ranking da sonegação. Embora o capital se beneficie do Estado para lucrar: de onde vem a mão de obra farta e qualificada que garante lucro às empresas ? De onde vem o dinheiro que moderniza e pavimenta vias, portos, e outras infraestruturas ? Onde o trabalhador corre para manter a saúde e continuar apto para o trabalho, senão no posto de saúde público ?
https://vozesdoverbo.blogspot.com/2019/09/onde-estao-os-desperdicios-de-recursos.html

Enfim, com certeza não vivemos em uma sociedade de deveres. Talvez também não vivamos em uma sociedade de direitos, mas sim em uma sociedade de vantagens, de esperteza, do jeitinho, do egocentrismo, do EU sendo mais importante que tudo. Uma sociedade competitiva, malandra, ambiciosa, capitalista, onde levar vantagem e explorar é mérito e diferencial competitivo. É um atributo. Uma sociedade que repousa suas ações em obter vantagens e conveniências individuais, onde os deveres são esquecidos e com eles até mesmo os valores estão sendo esquecidos. Uma sociedade que usa as leis não para cumpri-las e beneficiar a coletividade, mas para obter benefícios individuais e egocêntricos. Uma sociedade contraditória, onde o indivíduo é o elemento principal.
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