Caminhar: Entre a Conexão e a mercantilização, entre o eu e o outro.
Seja em grupo ou sozinho, este simples gesto oferece experiências que vão muito além do exercício físico: é um momento de contemplação, saúde, introspecção e encontro com o mundo natural, de certa forma tão distante do nosso dia a dia cercado de telas, buzinas, motores, paredes...
No entanto, à medida que o lazer e as práticas ao ar livre se tornaram tendências e atraem muitos adeptos, o caminhar — especialmente em ambientes naturais — passou a ser objeto de mercantilização, revelando contradições entre o propósito de conexão, contemplação, e o consumo que o cerca e a competição, muitas vezes implícita, nos eventos.
Caminhar em grupo tem inegáveis benefícios. Há a troca de
experiências, o incentivo mútuo, a segurança de estar acompanhado e, muitas vezes, a alegria compartilhada.Caminhar coletivamente é construir laços, dividir histórias e fortalecer o senso de pertencimento, elementos essenciais em uma sociedade frequentemente marcada pelo isolamento e pelo individualismo. Além disso, há uma dimensão educativa: caminhadas organizadas podem sensibilizar os participantes sobre questões ambientais e culturais da região explorada. Grupos coesos, que reúnem pessoas com as mesmas afinidades, podem gerar vínculos fortes de amizade, de companheirismo. Uma verdadeira noção de família.
Por outro lado, caminhar sozinho (ou em poucas pessoas) oferece uma experiência distinta e igualmente enriquecedora. A solitude permite um mergulho profundo no autoconhecimento, uma pausa nas vozes externas e uma abertura para os sons sutis da natureza.
Estar sozinho na trilha é uma oportunidade para a introspecção, para sentir o ritmo do próprio corpo e para perceber detalhes que muitas vezes se perdem em meio à multidão. Sozinho, você ouve pássaros, grilos, cigarras. Pausa para ouvir o som das águas correndo. Pode apreciar texturas de folhas, ver a vida em ação: insetos, sementes... pode ouvir até sua própria respiração.
Entretanto, caminhar sem companhia não se faz em qualquer hora e lugar, mas sim, consciente dos riscos e das medidas para mitigá-los, enfim, em locais que assim propiciem a segurança devida. Uma opção plausível, que permite auferir estas vantagens contemplativas, ao mesmo tempo ter segurança e apoio, é seguir em duplas ou poucas pessoas com o mesmo desejo e comportamento.
Esta é a dimensão individual das caminhadas. É a opção de mesmo em um evento repleto de pessoas, afastar-se contemplar. Mas existe ainda a dimensão coletiva ou estrutural do próprio evento e do que eles se tornaram.
O dilema surge quando caminhadas em áreas naturais deixam de ser apenas um meio de bem-estar para se tornarem produtos. A busca pelo lucro, com a oferta de pacotes turísticos, eventos massificados e a comercialização diversa transforma uma atividade simples em uma experiência industrializada.
A mercantilização altera a essência da caminhada, muitas vezes priorizando o consumo em detrimento da vivência. Trilhas silenciosas se tornam palcos de aglomeração, o tempo contemplativo dá lugar à urgência de registrar fotos para as redes sociais, e o contato com a natureza é mediado por produtos e marcas que prometem "melhorar" a experiência.
Trilhas que deveriam promover tranquilidade e contemplação se tornam palcos de espetáculos e disputas veladas, seja por popularidade, seja por marcas pessoais ou corporativas.
E aqui surge uma terceira dimensão destes eventos que exige reflexão. Outro aspecto da mercantilização ocorre quando as caminhadas se tornam instrumentos de promoção política, social ou institucional. Não se trata de algo intrinsecamente negativo — muitas vezes, essa visibilidade é o que viabiliza o evento ou o torna acessível. Contudo, é essencial separar o que faz parte da atividade em si, com seus benefícios à saúde e à conexão, dos interesses satélites que orbitam essas iniciativas.
Quando caminhadas passam a ser vistas como oportunidade de autopromoção ou exploração comercial, corre-se o risco de perder o foco em sua verdadeira essência: a relação do ser humano com o ato de caminhar e com o ambiente ao seu redor.
A questão central é como equilibrar essas dimensões. É possível promover caminhadas organizadas que respeitem o silêncio e a contemplação? Como incentivar o turismo sustentável sem reduzir a natureza a um palco para consumo e competição? Como evitar que a popularidade transforme a caminhada em um produto elitizado, caro, ou mesmo mensurável em dinheiro, distanciando-a de sua natureza democrática e acessível?
As caminhadas são tidas como esportes populares não competitivos. Como não perder a essência da popularidade, mantendo-o acessível e democrático? Como mantê-lo não competitivo, considerando que a competitividade não ocorre somente na busca por resultados, rankings ou pódios, mas na vaidade e egocentrismo que alimenta postagens em redes, na autopromoção, no uso dos eventos como ferramenta de marketing?
Uma resposta está no resgate de valores fundamentais: o respeito ao ambiente, à simplicidade do ato e ao tempo necessário para vivê-lo plenamente. Caminhar não deve ser apenas um evento, mas um exercício de presença. Um convite à experiência autêntica, sem a pressa e as distrações que o mundo moderno nos impõe. Estamos imersos na natureza justamente para respirar livre das amarras da vida competitiva e consumista. Buscamos a mata para ver se nos encontramos nela. Ou achamos em algum córrego, a fonte de paz e tranquilidade que precisamos para descansar ou carregar as energias para mais uma semana. Não podemos cometer o erro de levar para a natureza os mesmos erros, vícios, condutas, e o ego que nos prejudica no dia a dia em nossa vida produtivista.
Caminhar é, afinal, mais do que chegar a um destino: é apreciar o percurso. Seja em grupo ou sozinho, é um momento de encontro com a natureza, com os outros e, principalmente, consigo mesmo. Em tempos de pressa e mercantilização, talvez o maior luxo seja o ato deliberado de desacelerar, sentir os próprios passos e simplesmente caminhar.

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