Empreendedor: um conceito ideológico e enganador?

"Empreendedor: um conceito ideológico e enganador?”

Nos últimos anos, tornou-se comum ouvir que “todos são empreendedores”. Do motorista de aplicativo ao vendedor ambulante, do microempreendedor individual ao trabalhador que presta serviços por demanda, a revendedora de cosmético, quem vende doces no sinal, etc. Todos passaram a carregar o título que, por muito tempo, foi reservado aos grandes capitalistas.

Trabalhadores informais e o mito do empreendedorismo
Não estamos discutindo a importância, valor ou nobreza do trabalho. A questão é o termo para designar estes trabalhadores, o qual passou por uma mudança.

Mas essa transformação semântica não é neutra. Pelo contrário, é um dos maiores golpes ideológicos contra a consciência de classe no mundo contemporâneo.

O economista Joseph Schumpeter, considerado um dos expoentes do liberalismo no século XX, já deixava claro em sua obra Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942) que o empreendedor era aquele que assumia riscos por meio da aplicação de capital. Em outras palavras, para Schumpeter, o empreendedor não era o trabalhador autônomo que luta para sobreviver, mas sim o capitalista que detinha os meios de produção e a capacidade de investir.

No entanto, no discurso contemporâneo

essa definição foi distorcida. Hoje, o camelô que depende de cada venda para colocar comida na mesa é chamado de “empreendedor”. O motorista de aplicativo, que paga o combustível, o carro, a manutenção e ainda cede parte da renda à plataforma, também é “empreendedor”.

Em comum, todos esses trabalhadores carregam uma dose de precarização nas relações de trabalho. Mas os próprios dirão que é “liberdade”. Na verdade, às vezes, é a única opção de gerar renda. Pode ser rentável, pode ter flexibilidade de horários, pode ter qualquer vantagem que seja alegada. Mas isso não os transforma em donos dos meios de produção ou grandes aplicadores de capital.

Da servidão à uberização

Essa manipulação de linguagem não é nova. Karl Marx, em O Capital (1867), já denunciava que o capitalismo possui uma incrível capacidade de criar ideologias que naturalizam a exploração. O que vemos hoje é uma versão atualizada desse processo: trabalhadores se veem como “donos de si mesmos”, quando, na prática, estão ainda mais desprotegidos do que estavam sob relações formais de trabalho.

Comparação entre servidão feudal e uberização

A comparação com o feudalismo não é exagero. No período medieval, os servos trabalhavam nas terras dos senhores feudais e, em troca, tinham apenas o direito de ter parte da produção para se alimentar. Hoje, os grandes capitalistas exercem papel semelhante: acumulam riqueza a partir do trabalho de motoristas, entregadores, terceirizados e autônomos, enquanto vendem a ilusão de que estes são “parceiros de negócios”.

Mas há um aspecto essencial: a história avança pelas lutas sociais. Do feudalismo às revoluções burguesas, da escravidão às leis trabalhistas, foram as mobilizações populares que impuseram limites à exploração.

No Brasil, a CLT (1943) foi fruto da pressão social em um contexto de industrialização, não um presente concedido por elites benevolentes.

O ataque aos direitos e o mito da “liberdade”

Reduzir direitos sob a falsa justificativa da liberdade é dar ainda mais poder a quem já possui poder de sobra e sacrificar ainda mais quem já é historicamente sacrificado.

Atacar a CLT, transformá-la em piada ou meme, não é ato inocente, mas projeto político com interesses muito bem definidos: ampliar a margem de exploração e reduzir o poder de resistência do trabalhador.

Manipulação ideológica na política contemporânea

Enquanto isso, a direita atua de forma cirúrgica: vende ilusões, manipula conceitos, repete slogans fáceis e se diz “isenta”. Mas age como um câncer, infiltrando-se sorrateiramente no tecido social e corroendo as bases da organização coletiva.

O mito do empreendedorismo universal é uma poderosa arma ideológica. Ele naturaliza a precarização, deslegitima direitos conquistados com décadas de luta e desloca o foco da exploração estrutural para a responsabilidade individual. A desigualdade, no entanto, permanece intocada, apenas muda de nome.

Se antes o servo acreditava que devia lealdade ao senhor feudal, hoje o usuário de aplicativo acredita que é sócio de uma plataforma bilionária. A história muda de cenário, mas a exploração continua a mesma. E, enquanto a classe trabalhadora não retomar sua consciência histórica e sua capacidade de organização, continuará defendendo os interesses daqueles que, sorrateiramente, a devoram.

Nenhum comentário:

Postar um comentário