É uma facilidade, é uma medida populista, mas flexibilizar a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) tem alto grau de risco.
Em um país onde em qualquer cidade média se registra diariamente dezenas de acidentes causados por imperícia, imprudência e negligência, onde o respeito ao pedestre é quase inexistente, onde se briga e até se mata por causa discussões banais de trânsito, falar em flexibilizar a CNH é equivalente a entregar uma arma nas mãos de quem não está preparado para usá-la.
A realidade é simples e incômoda: grande parte dos motoristas brasileiros não demonstra domínio técnico, nem maturidade emocional para conduzir um veículo de forma segura. As estatísticas de mortes e lesões no trânsito falam por si.
Não vou trazer dados neste breve texto, até porque, de tão rotineiras, muitos acidentes com "apenas" prejuízos materiais nem entram na conta, mas além das vidas perdidas, da capacidade laboral comprometida, gera um custo enorme ao SUS - sistema único de saúde.
Dirigir exige autocontrole, leitura de risco, capacidade de antecipação e responsabilidade coletiva, atributos que não surgem rápida e espontaneamente. Exige busca pelo conhecimento, não apenas prático, mas também teórico. Basta transitar em qualquer rodovia, que vemos inúmeros casos de imprudência. E muitas vezes não se tem a oportunidade de errar novamente. Um erro leva à morte do condutor, dos demais ocupantes e de terceiros inocentemente envolvidos.
O governo deveria fazer o oposto: tornar o processo de habilitação mais rigoroso, aprofundar a formação teórica e prática, ampliar critérios psicológicos, reforçar a educação continuada e investir seriamente em fiscalização. Inclusive, tanto nas rodovias quanto nos municípios, precisamos de mais câmeras, mais radares, mais blitze, mais presença do Estado onde o caos já é rotina. Inclusive, melhorando as condições de segurança das vias, pois até mesmo as pedagiadas, entregues à iniciativa privada, não são adequadas plenamente ao atual e crescente fluxo de veículos.
Não é criminalizar o motorista; é proteger vidas, tanto em vias urbanas quanto em rodovias, que já se tornaram corredores da morte.
E aí surge a desculpa absurda: “a autoescola não ensina”. Como se a solução fosse jogar pessoas sem preparo técnico nas ruas para aprender “na marra”, reproduzindo vícios, achismos e manias transmitidas por motoristas que, muitas vezes, são parte do próprio problema. Transformar vias públicas em campo de testes é condenar crianças, idosos, ciclistas, motociclistas, outros condutores (e até animais) a serem cobaias até que o aprendiz desenvolva alguma perícia (se sobreviver até lá).
Se seguirmos essa lógica torta, médico não precisa de residência, aprende errando nos pacientes. Professor não precisa de estágio, descobre sozinho em sala de aula. Em nenhuma profissão séria admite-se improviso. No trânsito, entretanto, onde vidas se cruzam a centímetros e decisões de segundos definem quem volta para casa e quem vai para o hospital, querem normalizar o amadorismo e a pressa.
Talvez para alimentar a grande e poderosa indústria automobilística (que ditou os rumos do "desenvolvimento nacional" no passado, substituindo trilhos por rodovias), a indústria de combustíveis, entre outras causas econômicas.
O Brasil já tem carros demais, ruas saturadas, pressa demais e paciência de menos. Flexibilizar a habilitação é fechar os olhos para o que mais nos falta: prudência, técnica, autocontrole e responsabilidade. É perverso com quem anda a pé, é violento com quem anda de moto ou para quem, independente da modalidade de transporte, só deseja sobreviver à travessia da própria cidade.
Flexibilizar a CNH não é modernização, é negligência e irresponsabilidade. É transformar o caos em política pública. É aceitar que vidas continuarão sendo estatística. Mas o que importa é o direito de dirigir. Como não importa.