Lei de Terras e Lei do Boi: Só há ataque aos auxílios e cotas sociais quando beneficiam os pobres?

Uma das características marcantes do Sul do Brasil é a forte presença da imigração europeia e, no meio rural, ainda hoje, há predominância das pequenas propriedades rurais. A policultura também teve destaque no desenvolvimento, embora hoje o êxodo rural e a urbanização tenham ganhado força.

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Historicamente, isso não ocorreu por acaso. Além do clima, solo, e de traços culturais dos imigrantes que aqui chegaram, houve política pública com esta intencionalidade. 

Terras foram doadas a imigrantes europeus como estratégia de colonização, ocupação territorial e fortalecimento econômico, sendo posteriormente divididas entre herdeiros, perpetuando a posse até a atualidade e dando destaque a muitos sobrenomes hoje conhecidos.

Na prática, tratou-se de uma das primeiras grandes políticas sociais do país, porque não dizer, assistencialista. Entretanto, ao contrário da atualidade, onde programas sociais de distribuição de renda, muito menos generosos, são atacados, não há uma crítica amplamente discutida a respeito da questão das terras. 

Tratou-se de uma transferência patrimonial direta, garantida pelo

Estado, algo muito semelhante a uma bolsa-auxílio fundiário, ironicamente combatida hoje por setores da direita, forte no Sul, que se dizem defensores do Estado mínimo e da meritocracia.

Essa política, contudo, não foi neutra. Teve também um objetivo racial explícito. Integrava o projeto governamental de branqueamento da população brasileira, amplamente defendido no final do século XIX e início do século XX por intelectuais, políticos e pelo próprio Estado. 

Ao mesmo tempo, os negros recém-libertos da escravidão eram sistematicamente excluídos do acesso à terra.  Além de jamais receberam qualquer indenização pelo tempo de opressão, pelo lucro e riqueza que geraram aos "senhores" da época, o próprio Estado, dominado pela classe detentora do poder político e econômico, os excluiu de qualquer forma de integração social e autonomia econômica.

A Lei de Terras nº 601, de 18 de setembro de 1850, já havia transformado a terra em mercadoria, exigindo compra e registro, fechando o acesso para quem não possuía capital. Mesmo após a Abolição (13 de maio de 1888 - Lei Áurea) ex-escravizados enfrentaram barreiras legais, econômicas e sociais que, na prática, os impediram de adquirir terras, mesmo quando conseguiam algum recurso.

Enquanto isso, os barões e coronéis escravagistas não apenas preservaram o patrimônio acumulado com trabalho forçado, como o converteram em poder político duradouro. 

A riqueza herdada financiou mandatos, influenciou leis, trouxe benefícios simbólicos e materiais para estas famílias, licita e talvez, pelas margens da lei.

Muitos dos nomes que ainda hoje ocupam espaços centrais na política e na economia brasileira derivam diretamente desse acúmulo inicial profundamente desigual, jamais questionado ou reparado.

A política social de garantir acesso facilitado às terras e aos meios para cultivá-la, oferecidos aos imigrantes, sem dúvida, foi um benefício direcionado a um grupo específico, notadamente, baseado em etnia. Ou seja, uma política social de distribuição não apenas de renda, mas de patrimônio e de bases para o crescimento econômico particular, desmontando a ideia da meritocracia, defendida por muitos destes grupos que atacam um benefício mínimo como o Bolsa-família.

Não cabe aqui destacar, mas o PBF atende em sua maioria mulheres, dando dignidade e condições de subsistência para elas e filhos. A maioria dos empregos formais gerados foram ocupados por beneficiários do programa, cujo objetivo não é substituir a renda do trabalho. Chega ao ridículo de proporem projetos para retirar a cidadania e o direito ao voto de quem recebe tal benefício, esquecendo que empresários (muitas vezes sonegadores), grandes latifundiários e outros donos de capital recebem fomento, subsídios, e outros benefícios estatais. Perderiam também o direito ao voto ? Lembrando que muitos, não apenas votam, como são políticos eleitos.

O mesmo padrão de privilégio estatal, antigo e convenientemente pouco falado, esquecido, pode ser exemplificado no acesso à educação superior. Ou seja, da mesma forma que atacam as cotas raciais e sociais atualmente, fecham os olhos para exemplos históricos de cotas para ricos fazendeiros, raiz do agro atual.

Em plena ditadura militar, foi instituída a chamada Lei do Boi, Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968, que reservava vagas em escolas técnicas agrícolas e universidades públicas para filhos de proprietários rurais. 

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Eram cotas explícitas para a elite agrária, justificadas pelo discurso de formar pessoal qualificado para gerir a produção agrícola e desenvolver o país. Na prática, beneficiavam apens herdeiros dos donos da terra (muitos que herdaram sesmarias, que invadiram terras ou ganharam por influência política, já que o Brasil começou pelas capitanias hereditárias). Não foi uma política para trabalhadores rurais,  filhos de peões ou para a população pobre do campo.

Enquanto filhos de fazendeiros tinham acesso facilitado ao ensino público superior, a população negra, os pobres urbanos e rurais continuavam excluídos tanto da terra quanto da universidade. E para não estender demais o texto, não será citada a exploração e dizimação indígena neste contexto, cujos reflexos em todos os aspectos são percebidos até hoje.

O Estado, portanto, nunca foi neutro. Sempre escolheu quem apoiar, quem proteger e quem deixar à margem. A diferença é que, quando as políticas beneficiavam os poderosos, eram chamadas de desenvolvimento, modernização ou estratégia nacional. Quando passam a alcançar as camadas populares, são rotuladas como populismo, privilégio, ameaça ao mérito. É sustentar vagabundo, dizem alguns. Inclusive, pessoas da própria classe pobre e trabalhora compra este discurso perverso e conveniente, talvez por desconhecimento, espero eu.

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É nesse ponto que o discurso da meritocracia se revela frágil e profundamente injusto e hipócrita. Não existe mérito em ponto de largada desigual. Não há competição justa quando alguns recebem terra, herança, crédito, sobrenome e rede de poder, enquanto outros recebem exclusão, miséria e estigmatização. A meritocracia só serve como arma para a justificativa moral da manutenção de privilégios herdados.

Escancara-se, assim, a contradição de quem critica cotas sociais hoje, demoniza políticas de inclusão e acusa o Estado de interferir demais, mas silencia convenientemente sobre as políticas históricas que beneficiaram suas próprias famílias e grupos. O problema nunca foi a ação do Estado. O problema, para esses setores, é quem o Estado decide beneficiar.

Não se trata de desmercer o sacrifício de tantos que construíram com muito trabalho o Brasil, como os tantos imigrantes que aqui chegaram nas mais diferentes épocas e lugares. Na verdade, trabalhadores que enfrentaram desafios árduos. 

Mas é necessário trazer ao foco estas políticas sociais, algumas justas, outras nem tanto, que já foram historicamente utilizadas  e nunca criticadas com tanto vigor como agora. Trata-se também de revelar a hipocrisia de certos segmentos sociais e políticos, quando atacam a ação do Estado (fruto de muita reivindicação popular) de dar um suporte mínimo para o aspecto social e para a dignidade humana. 

Quando criticam políticas como o Bolsa Família, que evita que as pessoas se sujeitem a trabalhos degradantes ou literalmente, trabalhem em troca do almoço, visão que parece naturalizada ainda na sociedade, a própria classe trabalhadora reproduz uma visão excludente, preconceituosa e se auto flagela.

Reconhecer essa trajetória não é revanchismo nem ataque individual. É trazer luz a fatos históricos. Riqueza, poder e oportunidades têm origem jurídica, política e social. Ignorar isso não é neutralidade. É tomar partido da desigualdade herdada e fingir que ela é fruto apenas de esforço pessoal.

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