Além da discussão sociológica, pois envolve valores, status social, costumes e distinções de classe, o uso do termo traz implicações de ordem prática, inclusive nas relações comerciais, quando optamos por contratar determinado profissional que ao apresentar tal título se destaca como mais qualificado em relação a respectiva concorrência.


Diante de inúmeras controvérsias e de n implicações, irrelevantes para discorrer sobre outras tantas delas, despertou-se o interesse de propor ao banco de ideias da Câmara dos Deputados uma sugestão de pauta para tratar aprofundadamente, com o debate que o tema merece, uma regulamentação mais objetiva sobre o tema.

Assim foi encaminhado à Câmara dos Deputados, salvo engano em 2020, sob protocolo 171020-000004, a sugestão de ser elaborado um projeto de lei regulamentando, de maneira condizente com o atual contexto histórico, social, cultural e até mesmo econômico, o uso do termo doutor.

Trata-se, em uma de suas acepções, de título acadêmico, utilizado, todavia, como forma de tratamento, demonstrando, implicitamente, determinado grau de hierarquia ou superioridade nas relações sociais. Ou seja, mistura e confunde-se um título acadêmico com pronome de tratamento, de forma indevida.

Além de que, categorias profissionais, por alguma razão, inclusive pela atuação dos respectivos conselhos, defendem o uso do termo por aqueles que são graduados na área, mas não detêm o doutorado, indicando que este viés profissional do termo pode ter alguma finalidade, seja simbólica, seja comercial ou econômica.


Já na esfera social, também pode ser utilizado como forma de deferência, marcação simbólica de status, de poder, de acesso a oportunidades. Seja como forma de demonstrar intelecto, maior poder aquisitivo, maior poder político ou social, maior propriedade aos discursos ou credibilidade, enfim, remete a uma ideia de hierarquia ou superioridade, especialmente quando utilizado fora dos círculos acadêmicos, ou seja, como pronome de tratamento.

Esta acepção, em específico, não mais condiz com os valores sociais e com os princípios consagrados pela Constituição de igualdade.

Há relatos de que tal título, no caso dos advogados, decorre da longínqua época de Dom Pedro, que assim concedeu a pompa designativa e até hoje não foi revogada juridicamente, ou mesmo que assim o fosse, defendem alguns que é questão de tradição. Mas nem mesmo há unanimidade sobre a existência de tal decreto. Um artigo muito esclarecedor e completo pode ser lido clicando aqui.

https://www.moisescartuns.com.br/2022/04/venda-de-titulos-de-nobreza-no-segudo.html

Além desta categoria profissional, outras entraram ou estão entrando na esteira e adotando em suas publicidades tal título, gerando confusão por parte da sociedade em geral, ou dos clientes, em específico, se o profissional realmente possui tal formação, ou apenas usa de forma simbólica tal termo diante do nome.

De certa forma, o uso do termo por aqueles que não detêm tal grau de formação acadêmica, torna-se uma forma de aviltar o esforço, o tempo e o investimento financeiro daqueles que realmente cursaram uma pós-graduação stricto sensu, os quais, muitas vezes, sequer utilizam tal termo fora de seu ambiente acadêmico, onde tal titulação encontra seu verdadeiro sentido. Neste caso, o título é merecido não só por anos de dedicação à vida acadêmica e aos estudos, mas também pela produção científica e acadêmica e pelas pesquisas, geralmente inéditas, que possibilitam a aplicação prática do saber acadêmico na solução de questões socialmente relevantes.

Comum ainda é o uso do termo "doutor", estampado em cartões de visita e portas de escritórios, consultórios etc. Isto confunde a população enquanto consumidora de serviços, afetando as relações econômicas. Com o uso do referido termo, repassa-se ao cliente a ideia de que o profissional tem uma formação que, em muitos casos, não detém. De certa forma, quase que se aproxima de propaganda enganosa.

E por fim, leis ou mesmo meros decretos do tempo do Império ou tradições obsoletas não podem justificar a perpetuação de uma prática que não encontra mais validade no atual contexto, como é o caso de certas profissões que, mesmo tendo o grau de bacharel, utilizam o termo.

Desta forma, foi salutar o Decreto emanado pelo governo Bolsonaro (9758/2019), que proíbe servidores e integrantes do governo federal a utilizarem os termos "Vossa Excelência" e "doutor" em comunicados, atos e cerimônias públicas, sendo adequado e suficiente o uso do termo SENHOR. Normatização que deveria ser estendida para as esferas estaduais e municipais da administração pública, de forma coerente com os valores democráticos e republicanos, pautados na transparência e na igualdade.

Esta legislação não resolve na íntegra o caso, não tem abrangência além da esfera federal do serviço público, mas mostra que o atual contexto sociocultural não contempla mais determinadas distinções formais, as quais precisam ser definitivamente revistas, primeiro de forma legal, posteriormente alcançando a mudança sociocultural plena e se alastrando pela sociedade.

Embora na prática a busca pela igualdade material esteja longe de ocorrer, damos mais um passo formal para construí-la. Ao lado da Constituição, que desde 1988 determina que todos são iguais, este decreto, ao considerar a realidade social e os novos anseios do povo, independentemente das intenções, acende uma esperança: uma sociedade que busca ser igualitária, que não admite privilégios, também não pode admitir opressões, não pode tolerar jeitinhos, diferenças de tratamento, símbolos de autoridade, temor reverencial, ou outras sombras quase dos tempos nobiliárquicos dos condes e barões.

Tal decreto tem a qualidade de abrir a discussão para a ampliação do tema. Seria ingenuidade pensar que um decreto mudaria abruptamente usos, costumes e representações simbólicas arraigadas no seio social, mas demonstra, sem dúvidas, a mudança de paradigma que vivenciamos atualmente. Expressa muito mais do que um ato de governo: é o reflexo de uma sociedade que, de forma ainda encabulada, busca dirimir as desigualdades.

Desigualdades que derivam, muitas vezes, de períodos históricos marcados pela exclusão, desigualdade e privilégios de poucos e que atualmente estão sendo revistos, embora com resistência.