Liberdade de expressão e politicamente correto: faces da mesma moeda ?

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Estamos vivendo um momento marcado pelo viés político-ideológico, de gritantes contradições e de polarização. 

Neste contexto, a questão da liberdade de expressão, por exemplo, tem sido fartamente invocada sob a alegação de defender o direito individual de opinar sobre tudo, da maneira que o indivíduo quiser, pouco importando os impactos sociais, a ética e o respeito ao outro.

Esta visão se alicerça sob uma espécie de exacerbação do individualismo egoísta, talvez uma forma de narcisismo como epidemia que ataca os valores sociais. Porém, não se resume a uma liberdade individual apenas, a um resultado da autonomia consciente do indivíduo, mas em partes, é fruto de uma manipulação estruturada por organismos ou grupos que se valem do antagonismo social. Tanto, que os mesmos que defendem a absoluta liberdade de expressão, inclusive para propalar mentiras, tentam tolher o pensamento crítico, vinculando-o a correntes ideológicas ou a doutrinação.

Enfim, a liberdade de expressão, direito fundamental expresso na Carta Magna, mas que certamente é um valor pré-constitucional (pois a própria noção de democracia se sustente nela), tem suas distorções.

A liberdade tornou-se um

mantra político, aplicado a N contextos, o que esvazia seu importante significado. Ela vem sendo usada para defender pensamentos e ações questionáveis moralmente e contraproducentes socialmente, para justificar uma série de atitudes, como a propagação de mentiras (e suas consequências danosas), a manipulação social, o enrijecimento de pensamentos extremistas e preconceituosos.

Não se trata de defender o direito de livre pensamento, como fica explícito nos argumentos de muitos defensores da tal liberdade. O malabarismo começa quando confundem o que é liberdade de expressão com liberdade de pensamento. Ora, por piores que sejam os pensamentos de um indivíduo, ninguém pode acessá-los, controlá-los, confirmá-los. É a ação que objetiva e materializa o fato de pensar. E entre as ações, está a expressão. Esta sim tem efeitos no convívio social. Liberdade de expressão é ato, diferente da liberdade de pensamento. Esta ninguém cogita em controlar. Porém, discursando como se fosse este direito que estivesse ameaçado, os defensores de certos abusos aumentam a gravidade de qualquer ato que tente bloquear ou regulamentar a disseminação de ofensas, fakenews, preconceitos, etc. sobretudo na mídia.

E a distorção continua quando dizem que a liberdade de expressão é um direito absoluto, quando sabemos que segundo a própria Constituição que usam para invocar tal direito, nem mesmo a vida é. Nenhum direito é absoluto.

Por outro lado, esta reação ou reacionarismo se contrapõe, de certa forma, à chamada Ditadura do Politicamente Correto, que também manifesta um grande rigor, não apenas para reduzir comportamentos preconceituosos, misóginos, discriminatórios enraizados e naturalizados nas práticas sociais, mas como forma de marcar posição política-ideológica. Obviamente, o ser humano é essencialmente político e a sociedade precisa repensar suas práticas segregadoras, no entanto, a crítica recai sobre os objetivos e intenções destas manifestações.

https://racismoambiental.net.br/2018/07/13/
manipulacao-da-informacao-escolhas-
e-consequencias/

Por outro lado, hoje,  ao se expressar publicamente, ficamos, por vezes, receosos de utilizarmos algum conceito que possa ofender determinada parcela social. Até mesmo palavras que adquiriram novos significados contextuais (já que Linguagem é dinâmica), por sua etimologia ou histórico, são elevadas à categoria de vilãs racistas ou preconceituosas, em um anacronismo absurdo.

Um grade exemplo desta mudança está no humor. Basta comparar as piadas de 20 anos atrás com as atuais. Se estende inclusive no vocabulário. Hoje, por exemplo, a palavra doméstica é tida como preconceituosa. Para justificar isso, remetem o significado da palavra ao ato de domesticar (um animal, uma pessoa), sendo que contextualmente, todos que usam o termo, falam com relação ao lar, ao ambiente de casa. Outros termos como meia-tigela, denigrir, magia negra, lista negra, nas coxas, entre outros, figuram no rol de termos a serem eliminados do vocabulário. Tanto que estão sendo desenvolvidos teclados conscientes ou inteligentes que sugerem termos politicamente corretos ao digitar quando detectam termos preconceituosos.

Ou seja, há um antagonismo entre liberdade de expressão (que não se confunde com liberdade de pensamento) e o politicamente correto, ambos tratados de forma politiqueira e ideológica, não pensando em direitos fundamentais e em evolução social, mas como instrumento de posicionamento e demarcação de território cultural de grupos. São meios para distorcer a realidade, manipular e alienar massas, provando que até conceitos fundamentais para a vida individual ou social são pervertidos e utilizados com propósitos espúrios.

Outra questão subjacente, é o chamado lugar de fala, ou seja, no conceito de Djamila Ribeiro, não se trata apenas de analisar o que se fala, mas quem fala. Parte da premissa de que cada indivíduo enxerga o mundo por determinado prisma, que reflete suas condições culturais, econômicas, sociais, etc. Isso faz com que se dissemine a ideia, especialmente nas redes sociais, de que somente quem pertence a determinado grupo, pode falar sobre aquele grupo. Quando “João” defende a questão indígena, ele O faz  como um homem branco, jovem, de classe média, que defende os indígenas com base em sua visão de mundo e em suas noções do que é importante. Isso por sua, se relaciona com a questão das narrativas, outro termo em voga, demonstrando a relativização da realidade, fazendo com a verdade seja um conceito subjetivo, e portanto, dificultando a análise do que é fato ou fake, se relacionando com o que é ou não liberdade de expressão.

O lugar de fala, porém, não visa cercear a liberdade de expressão, tampouco pode criar uma realidade individual paralela onde qualquer expressão seja verdadeira, simplesmente por representar a visão de um dado sujeito.

Problemas que atingem a população negra, por exemplo, que representa mais de 50% da população, quando somados os pardos (46,8% como pardos, 9,4% como pretos, conforme dados da PNAD), são problemas de toda sociedade. O Brasil é um país miscigenado, o que reforça a tese de que os problemas sociais são comuns a maioria. Porém, alguns argumentam que brancos (quem é branco puro no Brasil ? ) não são legitimados socialmente a debater alguns temas, pois não tem um lugar de referência sobre a questão. O Mesmo ocorre com relação às diferenças de gênero. Homens defenderem pautas femininas, muitas vezes, é ato visto como interferência machista, tendo conotação inversa ao de apoio.

E por fim, e não menos relacionado à questão de liberdade de expressão, está a regulação profissional. Exercer ilegalmente uma profissão, que exige conhecimento técnico e especializado, com fins econômicos, pode trazer  riscos e prejuízos. Isto é fato. É uma questão primordial e exige rigorosa fiscalização, inclusive para dar segurança aos clientes. Porém, em alguns casos, há um certo exagero na chamada reserva de mercado. Há casos de blogueiros fitness que tiveram problemas aos expor uma dieta que realizaram,  exercícios que executaram na academia, etc. por invadirem uma área que não é de sua competência.

Extrapolando, logo uma mãe decidir o que o filho come será usurpar a função de um nutricionista ? Decidir o que o filho veste, será função de um personal stylist ? Dar um chá de camomila para uma criança seria exercício farmacêutico irregular ?

Enfim, exageros à parte, a questão da liberdade de expressão (e relacionadamente, liberdade de pensamento e de ação), bem como o contraponto do politicamente correto e da fiscalização das condutas, são elementos dialéticos e desassociáveis. São questões que regulam o tecido social, e portanto, precisam ser ponderados com racionalidade e bom senso. 

Talvez o principal elemento causador de distensões nestas áreas seja a ideologia, especialmente quando ela é utilizada para manipular e alienar a sociedade, conduzindo-a para um terreno em que o  debate e os problemas fundamentais ficam de lado, favorecendo a classe dominante (conceito que por mais clichê que seja, se refere aos políticos e aos grandes empresários que determinam os rumos econômicos e sociais). 

Outro problema é a hipocrisia dos formadores de opinião. Hoje, a informação influente parte de muitas fontes, especialmente em virtude das redes sociais. Muitas narrativas são criadas e espalhadas à velocidade da luz, segundo os interesses dos emissores. Mas basta uma análise atenta, minimamente livre da paixão ideológica (ou partidária) e se percebe as contradições e a hipocrisia. Os mesmos que defendem a liberdade de expressão de forma absoluta, de um lado, impõem censura, quando conveniente. Os mesmos que exigem moralidade de alguns, acham justificativas e pretextos para os erros de outros (o famosos passar pano).

Talvez a sociedade não estivesse preparada para o advento das redes sociais, ou pior, talvez a própria Democracia não esteja madura o suficiente, e a suposta liberdade e participação de todos enquanto atores sociais, seja meramente ilusória... 

Quanto às fakenews, lembremos que outrora as pessoas acreditavam em boitatás, lobisomens e outras crendices transmitidas oralmente. Só mudamos de contexto. Mas enquanto a crença nos causos foram sendo extintas do imaginário de forma proporcional à iluminação e ao avanço do desenvolvimento urbano, as distorções políticas da realidade (e até científicas, como dizer que a Terra é plana e vacinas matam) se intensificaram. Esperemos que as luzes da Ciência (sem viés), do bom senso e da verdadeira sabedoria, transformem as novas crendices em apenas contos e anedotas.

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