O capitalismo como ladrão do tempo (vida) e a crítica vazia ao Estado.

Hoje, é comum ouvirmos que temos pouco tempo disponível. Mas, matematicamente, o tempo sempre foi o mesmo. A questão é: o que fazemos com ele? O que priorizamos? Apesar das inúmeras inovações criadas para nos libertar do tempo dedicado ao trabalho e proporcionar mais tempo vivido, parece que o efeito é o oposto. Vivemos em um contexto que nos empurra cada vez mais para a escassez de tempo e o excesso de demandas. Não temos tempo para nada !! Não fazemos nada, e queremos fazer tudo...

Entre esses elementos materiais que contribuem para esta dinâmica caótica, estressante, insustentável,  destaca-se o polêmico celular. Quantas horas passamos diante de sua tela? Resolvendo problemas pessoais, do trabalho, se distraindo com a falsa noção de produtividade, de contato pessoal, tratando-o como lazer, aliado...

Mas, independentemente de como filosofamos sobre esses elementos isoladamente — celular, trabalho, ter, fazer (dieta, academia, faculdade, etc., tudo é fazer...) — precisamos compreender que o que nos aprisiona é um contexto.

E esse contexto, gostemos ou não, é o capitalismo. Estamos imersos nesse sistema, envoltos por ele. Inclusive, muitos tem a resposta pronta (prefiro ficar somente com este adjetivo): vá para Cuba, quando tecemos uma reflexão crítica sobre o sistema social, econômico e político que nos governa, como se mesmo em Cuba estivéssemos livres deste sistema que é global, cultural, sem de impactos sem fronteiras (só para citar, vide as guerras, os impactos ambientais, doenças, e tantas mazelas decorrentes dele direta ou indiretamente). Mas estas mortes e destruições, ninguém coloca na conta dele. É mais fácil culpar o clima, a sorte, a falta de esforço do indivíduo, em uma grotesca meritocracia existente apenas como invenção retórica.

E como elemento da sociedade, imerso nesta maré de perda de tempo, estes dias, ao rolar a tela do Instagram, deparo-me com

uma postagem (entre tantas outras com o mesmo teor) criticando o Estado, os tributos e enaltecendo o capitalismo como solução para eliminar esses "males" e tantos que a criatividade pode imaginar.

Penso: é como atacar o capeta e elogiar o inferno (ou vice-versa). Esquecem que a ação estatal ocorre dentro do capitalismo. Que os agentes do capital estão dentro do Estado, o controlam e se beneficiam dele. Mas a ideologia e a repetição automática de discursos  (mantras rasos e fáceis de repetir) são mais fortes que a análise crítica, impedindo-nos de entender que capitalismo e Estado são irmãos siameses (falta tempo para isso !)

O imposto (tecnicamente, o tributo - gênero do qual o imposto é espécie), tão criticado como vilão que maltrata o trabalhador, em grande parte vai para dar subsídio a grandes empresários, prover infraestrutura para o setor empresarial que, inclusive, domina o Congresso e faz lobby. Enfim, serve para a reprodução das relações de capital. Em outras palavras, para deixar o rico mais rico e o pobre mais dependente.

https://vermelho.org.br/2018/06/07/o-movi
mento-ciclico-e-a-crise-do-capitalismo/

Mas o próprio trabalhador, o brasileiro médio, da base da pirâmide social, esquece destes privilegiados e acha um absurdo o pequeno valor que vai para programas sociais que buscam dar o mínimo de dignidade para famílias ou autonomia para que as pessoas se desenvolvam sem terem que se submeter a trabalhos degradantes, a patrões quase escravocratas ou a troco do pão (e não vamos entrar aqui no processo histórico que fez com que 10% da população tenha 90% da riqueza - em números chutados, mas não absurdos).  E justamente essa concessão é usada pela classe dominante para reforçar o discurso de que imposto é roubo, escondendo onde ocorre a verdadeira corrosão do erário.

De acordo com o SINPROFAZ (Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional), a sonegação de impostos no Brasil gira em torno de R$ 630 bilhões por ano, superando o orçamento federal da saúde e da educação juntos. 

É uma drenagem escandalosa de recursos, muitas vezes promovida por grandes grupos econômicos que contratam consultorias e escritórios para “planejamento tributário agressivo”, ou mesmo pequenas empresas ou pessoas físicas que, na base do jeitinho, sonegam e assumem o risco da fiscalização. São pequenas corrupções que, somadas, são grandiosas e se transformam em modo natural de agir, em cultura, fazendo com que aquele que não se adapta a esse jogo perca competitividade ou seja taxado de ingênuo. É a cultura da malandragem que encontrou terreno fértil no Brasil.

E é o dinheiro de impostos que banca a educação pública para formar a mão de obra qualificada que as empresas buscam (e pagam pouco), manter a saúde do trabalhador.  O sistema capitalista não sobrevive sem Estado. 

Disponível em: <https://fernandonogueiracosta.files.wordpress.com

O Estado forma trabalhadores para o mercado — e subsidia essa formação através de educação pública. Além disso, arca com os custos de saúde de doenças causadas pelo próprio sistema produtivo: estresse, burnout, doenças físicas de esforço repetitivo, acidentes de trabalho etc. As empresas se beneficiam do trabalhador pronto e recuperado, enquanto os custos recaem sobre a sociedade.

Em muitos países, inclusive no Brasil, grande parte dos recursos públicos acaba sendo direcionada para subsídios, isenções fiscais ou financiamentos extremamente vantajosos para grandes empresas. O discurso da "geração de empregos" e do "desenvolvimento econômico" costuma justificar essas políticas, mas muitas vezes elas não trazem o retorno social esperado — e acabam aprofundando a desigualdade.

Rodovias, energia, telecomunicações, segurança pública, a calçada bonita no centro da cidade e que não tem nos bairros… tudo isso é mantido com dinheiro público, mas majoritariamente utilizado por empresas privadas para operar seus negócios com lucratividade ou torná-los mais atrativos. O setor empresarial se beneficia diretamente dessa estrutura — sem necessariamente arcar com o custo proporcional. Enquanto quem paga vive em bairros segregados, mas acha que o benefício social do seu vizinho é o problema. "Onde já se viu fulano recusar carpir um lote por 30 reais. Tudo culpa do governo que dá dinheiro pro povo !". Eu já ouvi. Você já ouviu estes comentários ?

A influência de grandes grupos econômicos no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas dos estados e até mesmo nos municípios, via lobby legal ou ilegal (financiamento de campanhas, cargos estratégicos, etc.), é um fato de conhecimento público. Isso resulta em legislações moldadas para atender interesses privados, não públicos.

E nada disso é novidade. Essa é uma leitura compartilhada por muitos teóricos, principalmente os da linha marxista e keynesiana. O capitalismo contemporâneo depende profundamente do Estado para: salvar empresas em crises (bailouts), garantir segurança jurídica, prover infraestrutura, formar mão de obra (barata, preferencialmente) e intervir quando o “livre mercado” falha (e falha com frequência).

A noção de "livre mercado" desregulado como sinônimo de liberdade econômica é, muitas vezes, uma ilusão: ele só funciona sustentado por um Estado que o ampare. Sem Estado, não há capitalismo — só colapso.

O próprio capitalismo depende de crises cíclicas, da pobreza, da escassez para alguns enquanto gera excesso de produção, desperdício, exploração ilimitada (de recursos, inclusive pessoas). O capitalismo é uma contradição em si mesmo. A única máxima simplista que talvez seja correta é que para o capitalismo, tempo é dinheiro. Isso é fato. Mas para nós pessoas, tempo é vida.

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