A lógica dos movimentos pela terra

Já se tornou banal as manchetes sobre as invasões e manifestações, pacíficas ou não, do MST ou de outros movimentos sociais, geralmente intensificados nos idos de abril (abril vermelho). Só com a intenção de reavivar alguns episódios, destaca-se: a depredação de praças de pedágio, saques em fazendas, destruição de centros de pesquisa, de plantações, bloqueio de rodovias, etc.

Esses grupos se manifestam reivindicando seus interesses, exigindo o olhar atento das autoridades e das políticas públicas sobre a complexa questão fundiária, e também e conseqüentemente social, no Brasil. A questão fundamental, entretanto, é: até onde essas manifestações são reivindicações e de certo modo até exercício da democracia, e em que ponto passam a ser consideradas atentados ao Estado de Direito, se transformando em vandalismo ?

Até que ponto essa é a única maneira de chamar atenção dos representantes da sociedade para uma causa tão séria ou existem possibilidades mais coerentes, legais e civilizadas (no sentido de não ferir direitos alheios ou gerar situações de risco) de se exigir transformações sociais ?

A necessidade e principalmente o ânimo de obter bens e posses, produtivas ou não, necessárias à subsistência ou mesmo supérfluas, é inerente a todo ser humano. Por isso, para regular e estabelecer limites, para manter a ordem e garantir o estado vigente das coisas, surge a figura do Estado e das leis, com poderes normativos e coercitivos.
No mundo, muitos passam fome, mas apesar de haver estoques agrícolas em propriedades, em armazéns, gêneros alimentícios diversos armazenados em estabelecimentos comerciais, e até mesmo havendo desperdícios, é ilícito apropriar-se sem a correspondente contrapartida financeira desses recursos. Isso poderia ser considerado furto, por exemplo. Basta lembrar o caso que ganhou repercussão na mídia da mulher que se apropriou de um pote de margarina em um supermercado e foi presa.

Muitas pessoas auferem ganhos provenientes do aluguel de imóveis, enquanto muitas outras tem como residência viadutos e marquises. E o déficit habitacional no Brasil não se resume aos moradores de rua. Muitas pessoas destinam grande parcela de seus salários ao aluguel ou mesmo ao pagamento de financiamentos (com elevados juros) de casas. Independente de tudo isso, é uma contravenção legal, sujeita aos rigores da justiça, que alguém invada a casa de campo ou algum apartamento desocupado de alguns desses proprietários.

Existe, de fato, uma questão social relevante. Mas não cabe ao particular, através de uma ação pessoal e individual resolver o fato. Aqui entra a necessidade das políticas sociais do Estado, seja através do criticado, mas às vezes necessário assistencialismo, ou através de medidas que permitem a geração de renda e obtenção de tais bens sociais.

Por sua vez, no discurso de alguns integrantes dos movimentos sociais, fica explícita a ideia de que a existência de terras ociosas é justificativa suficiente para eles reivindicarem, ou melhor, para agirem na conquista dessas terras, em alguns casos, através da violência e do vandalismo, conforme divulgam inúmeras manchetes na mídia e na web.

Fica evidente na justificativa daqueles de posição mais radical, o discurso sobre a injusta origem das riquezas, trazendo à tona um debate muito mais complexo e que extrapola a questão fundiária tomada isoladamente.

De qualquer forma, a reforma agrária tão sonhada por muitos e tão anunciada pelo governo, é função do Estado, por meio de seu aparato técnico e legal.

Permitir que essa reforma seja feita a punho individual por movimentos muitas vezes imbuídos de influências políticas, é abrir precedentes para novos grupos, para novas causas, que verão nessa lacuna aberta pela inércia do Estado, a oportunidade para destruir muitos direitos conquistados, como o direito à propriedade, por exemplo. Além disso, a imposição da vontade desses grupos, ou de quem os manipula, pela força e crentes na impunidade, é uma afronta aos Estado, às leis, à democracia, é a prova final da falência do Estado como instituição regulamentadora da ordem. Isso sem mencionar as possíveis formas de doutrinação ideológica.

Muitos interpretam a ideia de defesa do direito à propriedade como de natureza diabolicamente capitalista, a qual deveria ser pronunciada pela elite poderosa e não por um cidadão representante da explorada classe trabalhadora. Ocorre que se o Estado não garantir, primeiramente, os direitos de seus cidadãos, independente de classe social, como esperar que reformar mais amplas e complexas sejam implementadas satisfatoriamente ?

O que impediria que as terras dos pequenos produtores ou mesmo dos assentados não fosse invadida, seus produtos agrícolas não fossem destruídos ou saqueados ? Enfim, entraríamos em uma organização social onde a visão individual de cada segmento social definiria o que é justiça, o que é direito ? Teríamos que constantemente depender da ação (não somente como prática social, mas como enfrentamento) para garantir cada mínima conquista neste possível contexto "sem Estado" ? Enfim, para garantir a propriedade e produzir nela, necessitaria ter poder para preservar a posse, para ter segurança, ou seja, a situação seria a mesma.

Pesa também a crítica de que muitos trabalhadores rurais assentados, não conseguindo manter sua propriedade sustentável as vendem. O que eles julgam necessário é que além das terras, o governo, com dinheiro público, dê também as condições para o agricultor se manter na terra. Em outras palavras: querem a faca e o queijo nas mãos e um garçom para servi-los. Isso sem mencionar que nada impede que as propriedades sejam vendidas simplesmente por solércia. Pois os integrantes dos movimentos aparentemente nunca se reduzem, apesar dos números profusos de novos assentamentos anunciados pelo governo.

Assim, é fundamental que essa questão seja regulamentada e definida com urgência pelo governo, de forma racional e transparente, e principalmente, organizada. É um direito esta reivindicação, trata-se de uma causa social. Porém, não se obtém um direito ferindo outros (ou os outros), principalmente o Estado Democrático de Direito.

Dessa forma, mais do que culpar o MST, ou qualquer outro movimento social, é preciso também cobrar a responsabilidade do Estado, tanto para garantir a socialização da agricultura, como para punir, dentro dos rigores da lei, os atos que ferem os direitos da sociedade ou de indivíduos.

Se o descaso continuar, a tendência é que outros grupos, inclusive antagônicos em interesses, também usem do mesmo artifício para reivindicar. Basta lembrar que está história de oposição de direitos já foi responsável por muitos embates e revoltas, como a do Contestado, para citar um exemplo. E o Estado ficará vendo o filme ? Atenderá as reivindicações, quando justas e coerentes com os interesses sociais, desses grupos ? Preservará os interesses e os direitos daqueles que tais grupos podem prejudicar, justamente pela inércia e desatenção do Estado ?

Temos uma valiosa lição histórica em nossa Região Sul: quando os imigrantes chegaram ao Brasil para colonizá-lo, não ganharam tudo do governo. Chegaram devendo até os gastos com a viagem. Trabalharam, mudando a concepção pejorativa de trabalho para algo nobre e digno. Hoje, gerações depois, seus descendentes colhem os frutos e continuam a trabalhar para manter a propriedade. Nada veio de graça.

Para satisfazer os movimentos agrários, por outro lado, pela lógica que expõe os membros dessa ideologia, seria necessário alocar uma parcela da extensão agricultável da superfície terrestre para cada pessoa que não consiga (ou queira) enfrentar outra ocupação. Assim, se pela lógica desse movimento, se um pai de família tem 4 alqueires de terra, e tem 4 filhos, essas terras não são divididas (1 alqueire para cada um), mas esses quatro filhos são trabalhadores sem terra, que irão compor o movimento.

É uma lógica cômica, utópica, senão fosse trágica e matematicamente impossível !

Há de se considerar ainda que os movimentos pela terra, pelo menos o principal deles, quando de seu surgimento, reivindicava a Reforma Agrária. Obviamente, a reforma era função do Estado, mas que pela morosidade e talvez, má vontade, necessitava ser pressionado pela sociedade. Posteriormente, iniciou uma alteração ideológica dos objetivos do movimento, passando a ter abertamente cunho político.

Além de reivindicar, iniciaram-se as ocupações. Primeiramente, nos latifúndios improdutivos, como forma de protesto. Depois, o ataque passou a ser contra o latifúndio, sendo alvo, inclusive, empresas de pesquisas agrícolas, praças de pedágio, etc. Isso demonstrou o novo foco: a luta contra o capitalismo (seguindo a cartilha marxista, leninista) opressor, injusto, desigual e responsável por qualquer flagelo social.

A movimentação da opinião popular e os objetivos políticos se fortaleceram e o movimento obteve até mesmo Universidades próprias. Nesse momento, a luta era claramente contra o capitalismo e as escolas e universidades serviam de meios para formar a liderança da militância, transformando muitos trabalhadores rurais de fato em "massa de manobra."

Obviamente, que falar em Movimentos Sociais, sobretudo em MST, é adentrar em questões político-ideológicas, e como tal, é impossível a neutralidade absoluta. Há de se considerar entretanto, que há tantos argumentos, notícias e artigos científicos defendendo ambas as visões, embora no Brasil haja uma certa relutância social em aceitar o liberalismo, especialmente porque a Universidade, e consequentemente os professores, reproduzem ideais marxistas predominantemente.

Hoje, há quem julgue que a luta é abertamente contra a Propriedade Privada e a Democracia. Mas isto é assunto para um próximo texto.

Leia também:  A ação dos movimentos sem terra
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