Nos debates cotidianos sobre gestão pública, é comum ouvir afirmações como “posso reclamar porque pago imposto” ou “sou patrão do servidor público”. Este tipo de discurso, embora muitas vezes impulsionado por uma legítima frustração, é em sua essência uma simplificação grosseira da realidade tributária, social, econômica, legal e do funcionamento do Estado.
Demonstra que apenas deixamos nos levar por "discursos de bodega", sem fundamentos, sem compreensão mais profunda da realidade, sem empatia ou abertura para entender o contexto sobre outras perspectivas. Ou, às vezes, e o que é pior, não se trata de ignorância ou ingenuidade, atributos que todos nós temos em certas áreas diante da impossibilidade material de entender de tudo, mas de intencionalidade. Às vezes há intenção neste discurso invertido, vontade de manipular, polemizar, de se beneficiar, especialmente para fins politiqueiros. E alguns caem neste conto do vigário.
Este discurso revela uma visão que transforma a cidadania em um conceito de mercado, limitado à lógica do consumidor.
É fato que todos os cidadãos contribuem, direta ou indiretamente, com tributos. A carga tributária no Brasil é amplamente distribuída, recaindo, inclusive de forma desproporcional, sobre os mais pobres (e pasmem, alguns são contra taxar a ínfima parcela populacional dos bilionários). No entanto, a média salarial do brasileiro é baixa: segundo o IBGE (dados de 2024), o rendimento médio mensal do trabalhador gira em torno de R$ 3 mil. Se considerarmos o levantamento do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário), que estima que cerca de 30% da renda
média mensal de um trabalhador é consumida por tributos, isso resultaria, na prática, em aproximadamente R$ 1.000,00 mensais em impostos pagos por esse contribuinte médio. A quantia parece alta, mas diante da gama de serviços públicos acessados — como educação, saúde, segurança, transporte, coleta de lixo, iluminação pública, manutenção urbana, fiscalização, entre outros, esse valor dificilmente cobriria sequer um atendimento básico integral na rede privada.Tome-se como exemplo o custo de uma simples consulta médica particular, que, em clínicas populares, pode ultrapassar os R$ 300,00, sem contar exames, tratamentos e especialidades. Um plano de saúde com cobertura razoável ultrapassa facilmente R$ 700 por pessoa. Já uma mensalidade em escola privada pode passar de R$ 1.000 por aluno.
Se um trabalhador com dois ou três filhos tivesse que arcar com todos esses serviços por sem respaldo do Estado, sua renda seria tragada completamente, o que demonstra que na realidade, mesmo quem reclama do serviço público depende dele muito mais do que imagina ou admite. E mais: os próprios servidores públicos, alvos preferenciais desse tipo de discurso, também são contribuintes, também pagam impostos, também são usuários do sistema e, muitas vezes, são vítimas das mesmas deficiências estruturais.
Outro ponto negligenciado por essa lógica é que o maior beneficiário estrutural do Estado não é o trabalhador assalariado, mas o empresariado. Não se trata de demonizar a iniciativa privada, mas de esclarecer a teia de interdependência que sustenta o desenvolvimento. A infraestrutura urbana, como ruas, iluminação, segurança, escolas, transporte coletivo, etc. valoriza regiões e torna-as atrativas para a instalação de empresas e comércios. O trabalhador que ocupa essas vagas, via de regra, foi formado por meio de educação pública. A saúde pública permite que ele se mantenha produtivo. As universidades públicas fornecem mão de obra qualificada e produzem inovação. Portos, aeroportos, ruas, enfim, toda infraestrutura que garante vantagem competitiva ao empresário (embora muitas vezes o trabalhador esteja residindo em bairros segregados), é bancada com o imposto de todos. A ideia é coletiva, é agregadora, não se tem margem para individualismo em um sistema democrático e federativo.
Porém, apesar desta vantagem competitiva, os dados mais recentes indicam que a sonegação de tributos por parte de empresas gira em torno de R$ 600 bilhões por ano (cifra superior ao orçamento anual da saúde e da educação somados).
É importante ressaltar: esse dinheiro não é "sonegado do Estado", mas da própria coletividade, pois é com ele que se deveria custear as políticas públicas, incluindo as instituições educacionais que formam mão de obra farta e barata, a saúde que cura o trabalhador, muitas vezes de doenças ocupacionais, etc. etc. etc. E, ironicamente, o imposto sonegado costuma se transformar em lucro empresarial, já que o tributo foi embutido no preço e pago pelo consumidor final. Caberia às empresas apenas repassar este valor da sociedade para a sociedade (representada pelo Estado).
A visão de que pagar imposto confere o direito de ofender ou deslegitimar servidores públicos também é uma distorção. Não há, em nenhuma democracia madura, espaço para o abuso moral sob o pretexto de participação cívica. O controle social é necessário e saudável, mas deve se dar por meio de canais legais e respeitosos, baseados em dados, diálogo e argumentação. Quando o contribuinte se coloca como “patrão” individual do servidor, rompe-se o princípio republicano: não há patrão individual, pois ninguém, isoladamente, financia o Estado. O orçamento público é coletivo, elaborado por meio de planejamento técnico, votado por parlamentos democraticamente eleitos e aplicado segundo prioridades sociais, não vontades individuais. E além disso, segundo determinam as leis, que por sua natureza, são supremas e expressam a vontade da coletividade através dos representantes que as aprovaram.
Esta retórica individualista também carrega uma visão reducionista de cidadania: só seria cidadão quem paga imposto, ou melhor, quem tem renda suficiente para pagar. Isso exclui os desempregados, os beneficiários de políticas públicas, os estudantes, os aposentados de baixa renda e até mesmo as crianças, como se todos esses segmentos não tivessem direito à voz e à dignidade.
É uma forma disfarçada de elitismo, que transforma a cidadania em consumo. Pior: ao se eximir de considerar a estrutura, esse pensamento apaga o fato de que o próprio sistema tributário brasileiro é regressivo, ou seja, proporcionalmente os mais pobres pagam mais do que os mais ricos.
Por fim, é preciso frisar: o Estado não é um ser maligno ou abstrato. Ele é uma construção social. Mas, assim como uma doença não define a totalidade de um organismo, ou seja, uma pessoa com determinada doença não é boa ou má por isso, ela pode somente ter sido atacado por bactéerias. Da mesma forma, os males ou disfunções da administração pública não anulam sua importância. Ao contrário, revelam que existem disfunções na sociedade, e portanto, no indivíduos, e que todos temos muito a amadurecer civicamente.
Criticar com base em evidências, apontar falhas, exigir melhorias: tudo isso é exercício legítimo e necessário. Porém, reduzi-lo a um ataque pessoal, baseado em uma suposta superioridade moral de quem “paga impostos”, é apenas uma forma de repetir desigualdades e ampliar o abismo entre o público e o privado.
Em conclusão, o discurso de que pagar imposto confere ao indivíduo o direito de humilhar ou desrespeitar servidores ou instituições públicas é falacioso, elitista e perigoso. Ele revela mais sobre o desprezo à coletividade e à democracia do que sobre qualquer compromisso com o bom uso dos recursos públicos. Em uma sociedade justa, o Estado é visto como um projeto comum, não como um serviço de balcão. E cidadania, diferentemente do que muitos pregam, não se compra com impostos: se constrói com participação, solidariedade e respeito às instituições.
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