Um conto: meu amigo boitatá

O folclore brasileiro é repleto e rico de lendas e mitos que permeiam a imaginação das pessoas. Soma-se a isso os resquícios de uma sociedade rural, a cultura indígena (muito relacionada com a mata e fenômenos naturais), a forte crença místico-religiosa, mesclada com a rica imaginação do povo brasileiro.

Assim, até hoje, os mitos e lendas permeiam nosso folclore, as rodas de conversa, e, tratando-se dos famosos causos de assombração, a quaresma fertiliza ainda mais este terreno de imaginação e misticismo.

Duas dessas lendas, muito comuns em nossa região, são a do lobisomem e a do boitatá, ambos conhecidos por serem criaturas sobrenaturais que "aparecem" em praticamente todas regiões do país, com suas variantes. 

Enquanto o lobisomem é um ser que se transforma de humano em lobo durante as noites de lua cheia, o boitatá é uma cobra de fogo ou um facho cintilante que protege as florestas (tradição Tupi) ou deriva da alma de pessoas ruins que cometeram certos pecados, como o adultério entre compadres e comadres.


Um causo sério !

A história que vou contar aconteceu em uma localidade rural que não vou citar qual para preservar a identidade dos personagens. Foi no município de Rebouças, cidade do interior do Paraná com aproximadamente 11 mil habitantes no final dos anos de 1980, quando este fato ocorreu.

Nesta comunidade, com poucas residências e cercada de matas fechadas (pois a agricultura ocupava áreas um pouco mais restritas), carente de energia elétrica, e repleta de carreiros por onde os moradores cortavam distância, havia uma senhora chamada Dona Maria, benzedeira muito requisitada e querida de todos, inclusive de pessoas de municípios vizinhos que a procuravam para benzer diversas enfermidades, como cobreiro, quebranto, bichas, dor de barriga, susto...

Dona Maria, sempre com seu lenço na cabeça e usando vestidos coloridos, não costumava fazer seus benzimentos após às 18 horas, mas em uma noite de lua cheia, em plena quaresma, surgiu uma emergência que ela não podia deixar de atender. 

Seu João, um antigo morador da redondeza, que normalmente trabalhava no corte de madeiras e passava dias em barracos longe de casa, veio correndo buscá-la para que ela fosse à casa da comadre Ana, prima de seu João, para benzer uma criança recém-nascida. 

Ofício feito, a criança foi logo se acalmando e de repente estava dormindo feito um anjo. Dona Maria tomou um chimarrão com Dona Ana, passou a receita de um chá de maçanilha misturado com outras ervas, e se despediu.

Ao voltar para casa, Dona Maria sentiu um arrepio percorrer sua espinha, como se estivesse sendo observada. Mas ela estava acostumada a andar naquelas estradas, conhecia todos os moradores da região, conhecia cada cachorro, bravo ou manso, de cada casa, na época iluminadas à lampião. Não se preocupou muito e continuou seu passo, chacoalhando o rosário que sempre tinha em mãos.

Mas ao escutar um barulho incomum, uma espécie de rosnado, ela olhou para trás e viu uma figura escura a segui-la, entretanto não conseguia ver o que era, mas definitivamente não era um cão. Assustada,  tentou acelerar o passo, mas a figura a seguia cada vez mais de perto. Até que, de repente, ela percebeu que estava sendo perseguida por um lobisomem ! 

Seu João a alertou que era quaresma, insistiu para acompanhá-la no retorno, mas ela teimosa, mulher forte e destemida, de crenças rígidas, recusou. E quando Dona Maria dizia não, ai de quem teimasse com ela.

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O lobisomem era grande e assustador, com dentes pontiagudos e garras enormes. Seus longos pelos pretos se mesclavam com a escuridão do lugar.  Dona Maria conta que até dava para sentir o bafo do bicho. Ela sabia que não conseguiria vencê-lo sozinha, e não era mulher de fazer escândalo, correr e gritar por ajuda.  E naquela hora, isso não iria resolver.

Foi então que ela lembrou dos causos que seu falecido pai contava. Seu Antônio torcia o bigode e sempre dizia que o lobisomem jamais teme uma faca, mas corre feito um gato se ver fogo. 

Naquela situação desesperadora, Dona Maria lembrou de seu pai porque o velho homem sempre lhe deu força e apoio. Sempre lhe ensinava. E até nestas horas, suas lições podiam salvá-la. Era como se ele estivesse ali tentando defendê-la.

Ela lembrou também dos causos que seu pai contava sobre o Boitatá, o facho de luz que queimava as pessoas que prejudicavam a natureza ou cometiam certos pecados na quaresma. E como seu Antônio dizia: nunca se deve assobiar se estiver sozinho em uma noite de quaresma, pois isso atrai a cobra de fogo.

Dona Maria era uma amante da natureza. Conhecedora de rezas, de ervas, de chás, e sempre cuidava do meio ambiente com carinho. A própria natureza é nosso remédio, dizia ela. Ela também sabia que vivia tentando fazer o bem e ajudar as pessoas, por isso, não teve medo do Boitatá e decidiu lhe chamar com um forte assobio, como última alternativa. Seja o que Deus quiser, pensou. E apertou o crucifixo do rosário.

E não é que a ideia da benzedeira deu certo !

A cobra de fogo surgiu do meio das árvores e se colocou entre Dona Maria e o lobisomem.

O facho de luz cresceu e ficou tão forte que ofuscava os olhos da senhora, mas corajosa se esforçava para olhar. Ficou ao mesmo tempo apavorada e admirada com a beleza e  força que aquela luz emitia.

O lobisomem se arrepiou mas sequer teve tempo de avançar em direção ao boitatá. O fogo o atingiu, envolvendo seu corpo como em um abraço. O lobisomem uivou de dor e se debateu espojando-se no chão. 

Com o clarão de luz do Boitatá, Dona Maria viu nitidamente o lobisomem, e era muito mais assustador que ela imaginava. Mas o bicho saiu em disparada rumo à guachiva e desapareceu, ficando um cheiro forte de pelo queimado.

O Boitatá parou em frente a ela, movimentou-se suavemente no ar, como se planasse ao sabor do vento e afastou-se ganhando altura, pousando em um galho de um velho pinheiro que até hoje deve existir.  Ficou lá por um instante, como se estivesse iluminando o caminho para a senhora ir embora.

Dona Maria, protegida pelo Boitatá, conseguiu chegar em casa sã e salva.  Mas ela nunca esqueceu daquela noite, na qual sentiu o terror do lobisomem, e ao mesmo tempo, a compaixão do Boitatá.

Até hoje ela se pergunta se a história do Boitatá ser uma alma ruim e pecadora é verdadeira, pois para ela, ele foi uma luz de bondade e de socorro.

E sempre que ela contava a história do lobisomem e do boitatá, seus olhos lacrimejavam. Mais que medo, uma emoção tomava conta dela. Afinal, nunca se sabe o que pode habitar as sombras da noite. Mas em uma coisa ela acredita: o Boitatá sempre estará lá para proteger aqueles que são dignos de sua ajuda.

Até os mais jovens parentes de Dona Ana e conhecidos da família, que hoje desfrutam da luz da energia elétrica, popularizada em todos as comunidades, com acesso a tanta informação, ao ouvirem esta história se olham revelando uma mescla de medo e admiração, mas tentam pôr uma pitada de descrença em seus semblantes para não parecerem deslocados perante os amigos neste nosso tempo de desencanto e de descrença.

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